‘Água-Má’ e a imprevisibilidade brilhante de Filho da Mãe
Rui Carvalho tem vindo, desde 2011, a lançar música sob o epíteto de Filho da Mãe. A sua música comandada pela guitarra é quente e acolhedora, por muito que às vezes nos tente repelir com sonoridades drone, numa antítese cativante e imersiva. Depois de um intenso ano 2016 – em que lançou Mergulho e a colaboração com Ricardo Martins, Tormenta – o processo criativo levou-o a uma residência na Madeira, gravando Água-Má entre o arquipélago e a capital portuguesa. A influência madeirense está latente nos títulos, que Rui nos habituou a serem divertidamente absurdos, em exemplos como “Perseguição de Bananas”, “Poncha Como o Vento” ou “Camelos nas Levadas”.
Água-Má afirma-se como a depuração da música de Filho da Mãe. Condensa todos os melhores elementos do que fez até hoje numa embalagem concisa, que apetece ouvir repetidamente, pela forma como flui. O dedilhar alucinante da guitarra nunca deixa de impressionar, numa sobreposição de melodias que se entrelaçam e fundem numa amálgama cálida, em que cada elemento se distingue e dá a sua contribuição fulcral para o ambiente das canções. Nunca se sabe onde a sua música vai, é cheia de cantos e curvas, mas nunca se fecha em si mesma. Ouvi-la é um pairar por corredores sem paredes, sem se saber o destino. É nessa imprevisibilidade entusiasmante que a sua força reside, em que uma pessoa pode repetidamente ouvir o álbum e ir descobrindo novos elementos, até na interacção com o ambiente que nos envolve. Há uma capacidade camaleónica que o torna adequado para se ouvir à noite, à luz de velas, ou até com o torpor ruidoso do metro como pano de fundo.
“Praia” abre o disco num tom mais sereno e nocturno. Ouvimos uma respiração por cima da bela guitarra, que, com alguma imaginação, até se pode converter no marrar de ondas curtas e mudas numa praia deserta; mas, acima de tudo, essa respiração transmite a sensação de que a canção está viva. É a porta de entrada ideal para este disco, em que a guitarra respira, fala, solfeja e vibra. Em “Camelos nas Levadas”, ela chama por nós ritmicamente, deixando acumular pressão num crescendo pontuado pela mudança de acordes ruidosa, em que Rui deixa os seus dedos deslizar pelas cordas, como se a guitarra engolisse em seco. É uma canção nervosa, que acaba por libertar a sua tensão perto do fim, numa quebra efectuada com mestria.
Se a sua música pode ser serena ou nervosa, também pode ser sinistra (como dita o drone de “Perseguição de Bananas”) ou caótica (como em alguns segmentos de “Poncha Como o Vento”). A segunda metade, mais marcadamente inspirada pela estadia madeirense, explora sonoridades mais escuras e que levam a sua música em direcções entusiasmantes e menos desbravadas. A primeira metade acaba por ser mais convencional, apesar de brilhante. “Não, Não Danço” soa docemente melancólica. Dá para imaginar uma história a dois numa casa qualquer, em que ela dança, mas ele não.
O single “Nem Chuva, Nem Cães” é envolvente e irrequieto, há sempre algo a acontecer pelo meio de todas as suas linhas melódicas. O refrão – se é que se lhe pode chamar isso – é tão cativante, que nos fica na cabeça mesmo sem ter letras. As notas graves ditam a base da canção, num zumbido que ressoa e agrada, ao mesmo tempo que as notas mais agudas retinem com uma afectação emotiva. Adicionalmente, é quase percussão a forma como Rui parece querer arrancar as cordas da guitarra, produzindo um baque seco que dá dinamismo à canção.
Para finalizar, nada melhor que ouvir algum ruído branco, vindo de uma janela aberta num sítio tranquilo. “Casa” é a conclusão que o álbum precisava: o momento de introspecção e descanso auditivo que antecede o clique no play, novamente. Vamos da praia para a casa e passamos os dias nisto, ao som da guitarra de Filho da Mãe.
Quem já tiver assistido a um concerto do artista, sabe o quão intensos podem ser, com a destreza de Rui Carvalho na guitarra e a sua audácia na criação de sons abismais com os seus pedais. Estas canções novas cairão que nem ginjas nos seus espectáculos. Há concertos de apresentação marcados para o Teatro Maria Matos, em Lisboa, no dia 8 de Maio, e para o Ateneu Comercial do Porto, no dia 9 de Maio.