Alan Rickman: o seu discurso dramático e como elevou Severus Snape a uma obra-prima

por Ana Monteiro Fernandes,    29 Junho, 2020
Alan Rickman: o seu discurso dramático e como elevou Severus Snape a uma obra-prima
Fotografia de Marie-Lan Nguyen / Wikimedia Commons / CC-BY 3.0
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Para as gerações do início dos anos 90, foi o hilariante ‘Xerife de Nottingham’ do filme ‘Robin Hood: O Príncipe dos Ladrões’; para os amantes dos grandes clássicos de literatura, o ‘Coronel Brandon’ de ‘Sensibilidade e Bom Senso’, adaptação do livro homónimo de Jane Austen; para os amantes de acção, o antagonista ‘Hans Gruber’ de ‘Die Hard’. Para a minha geração e as que se seguem, foi ainda o misterioso e atormentado ‘Professor Severus Snape’, das adaptações cinematográficas da saga ‘Harry Potter’. Ensinou-nos a olhar para as suas personagens com mistério, dualidade, contradição, mas, acima de tudo, com uma classe característica na representação que nunca abandonou. O actor  de quem falamos é o britânico Alan Rickman e, neste artigo, vamos compreender o porquê de ser o verdadeiro mestre do dramatismo e da boa enunciação das suas deixas. Como é que isso elevou uma das mais complexas personagens de J.K. Rowling a uma autêntica obra-prima nos ecrãs? É o que vamos descobrir.

É intrigante como a melhor qualidade de um actor, aquela que, de facto, ainda é e será sempre lembrada pelos seus fãs, resulta, na verdade, de uma condição que poderia limitar ou impedir por completo a sua carreira. Alan Rickman não conseguia mover correctamente o seu maxilar. Para superar esse revés que soube transformar em força e identidade, o actor habitou-nos a um tom de voz baixo, suave mas muito profundo, e a um discurso pausado perfeito para o dramatismo e complexidade da composição das suas personagens. Não há como negar, Alan Rickman, por si só, era uma autêntica escola ambulante de como se fazer o discurso dramático perfeito. Por isso é que, no grande ecrã, nos deleitava na pele de vilões, introvertidos, ou personagens que nos permitissem antever uma grande complexidade dentro de si. Uma complexidade quieta, mas cujo olhar não deixava de indicar ao espectador que existia e respirava.

 É muitas vezes associado à vilania, ou referido como o actor que deu a voz aos vilões. Essa associação exclusiva não lhe agradava porque, em primeiro lugar, não corresponde totalmente à verdade, correndo o risco de não se diferenciar personalidades vilanescas de personalidades mais sensíveis, doces ou introspectivas como o ‘Coronel Brandon’ de ‘Sensibilidade e Bom Senso’, ou Jamie, de ‘Truly Madly Deeply’.  Não podemos pôr no mesmo plano, por exemplo, o coronel, a vilania cómica do xerife de ‘Robin Wood’, o monarca Luís XIV que interpretou em ‘A Little Chaos’ (filme realizado por si) ou até a sua interpretação de Franz Anton Mesmer – o multifacetado médico que deu origem ao mesmerismo.  Em segundo lugar, enquanto actor não gostava de ceder ao jogo de moralizar ou  de ser o próprio a psicologizar em demasia as suas personagens, inculcando no espectador a sua visão prévia sobre a representação. Isso, para si, era roubar ao público a magia do contacto, pela primeira vez, com o que vê. Por essas razões não gostava de focar a questão nas entrevistas e, quando confrontado com ela uma vez, respondeu “não interpreto vilões, interpreto pessoas muito interessantes.”

As pausas são muito subestimadas porque vivemos numa sociedade que fala mais do que ouve. Para Alan Rickman, no entanto, o cerne da boa representação está na capacidade de o actor saber ouvir. Só esta sua concepção do que é a representação nos abre o leque para a sua verdadeira identidade enquanto actor. “Só falamos porque desejamos responder a algo que ouvimos”, revelou numa entrevista. Além da intensidade do que se fala, aqui, também, cabe a intensidade e a reacção do que se ouve – a expressão do actor enquanto espera, enquanto absorve o ambiente, a demonstração de uma emoção enquanto ouvimos o que nos está a ser dito. Mais do que expressões demasiado histriónicas, Alan Rickman devolvia-nos a intensidade, principalmente, pelo olhar e pelo respeito máximo pelo ritmo que imprimia na suas falas.

Foi tarde que Alan Rickman se estreou no cinema, em 1988, em ‘Die Hard’, na pele de ‘Hans Gruber’ – estava, então, no início da casa dos 40 anos. Trata-se de uma idade tardia, principalmente nos dias que correm em que a fama parece ser orquestrada de forma bastante célere, repentina e precoce. A razão foi bastante simples – antes de seguir representação, Rickman estudou ‘Design Gráfico’ e exerceu na área, embora a paixão pelo teatro sempre estivesse lá. Só depois de se ter formado, aos 28 anos, pela ‘Royal Academy of Dramatic Arts’, altura em que trabalhou, igualmente, como assistente de guarda-roupa dos atores Nigel Hawthorne e Ralph Richardson, é que ingressou, logo, em várias companhias, nomeadamente a ‘Royal Shakespeare Company’. A peça ‘Ligações Perigosas’, de Pierre Choderlos de Laclos, que lhe valeu a nomeação para um prémio ‘Tony’ pela interpretação do ‘Visconde Vamont’, acabou por chegar à ‘Broadway’. Essa foi das peças que o ajudou a catapultar para o cinema de Hollywood, embora, na altura, fosse difícil para si imaginar-se num filme de acção. Antes do cinema, que chegou tardiamente à sua vida, temos de perceber que já tinha experiência no teatro que nunca colocou de parte ou deixou totalmente. Era essa a sua casa e a sua paixão. Devemos recordar papéis como, por exemplo, ‘Marco António’, em “Anthony and Cleopatra”, peça em que participou ao lado de Helen Mirren; Eliot, da peça ‘Private Lives’; sem esquecer ‘My Name Is Rachel Corrie’, peça encenada por si. 

Por todas estas razões, e até pelo facto do actor ter interpretado mais de 60 personagens, incluindo em telefilmes, como ‘Rasputin’, uma produção HBO que lhe valeu um ‘Emmy’ e um ‘Globo de Ouro’, é injusto reduzi-lo a um só papel. Mas também é extremamente injusto não reconhecer a excelência e o tanto que dedicou à preparação de ‘Professor Snape’, apenas porque faz parte de um grande projecto concebido para rentabilizar. Isso dá pano para mangas para várias discussões, mas essa visão polarizada, por vezes, tolda-nos e tira-nos aquela genuinidade de nos deixarmos levar pela magia de uma boa representação, só e apenas porque estamos perante uma boa representação. Era esse aspecto que se pretende desconstruir um pouco. Nada melhor do que irmos ao fundo da questão e, antes de formalizarmos uma opinião, tentarmos perceber, culturalmente, o que é que está, afinal, à nossa frente. 

A construção de Professor Snape

O género fantástico pode, muitas vezes, ser olhado com desconsideração por ser, totalmente, desfasado da nossa realidade, por estar na moda, ou por, independentemente dos novos mundos criados, ser, por um lado, fácil recorrer-se aos mesmos conceitos ou muletas criativas. Esses são conceitos que estão errados e que não poderiam estar mais longe da verdade por vários motivos. O segredo do fantástico que realmente toca as pessoas que esteja na pura e total evasão como, por vezes, fazem crer. Por um lado, compreende-se que também possa ter esse objectivo, mas não parece que essa evasão pura dure por muito tempo ou seja a única explicação para a adesão ao género. 

Porque nada vem do nada, nem Roma se construiu num só dia. Sagas como Harry Potter, Senhor dos Anéis ou até ‘Guerra dos Tronos representam o que, de alguma forma, sempre se fez na humanidade desde a criação da primeira personagem mitológica – a criação de novos mundos ou o recurso a novos símbolos para contarmos, afinal, a nossa história através de uma alegoria. É por isso mesmo que, na nossa contemporaneidade, as várias línguas modernas ainda estão imbuídas de referências mitológicas greco-romanas. Não é por coincidência que, no caso concreto de ‘Harry Potter’, por exemplo, há o cão com três cabeças ou a ‘Fénix’ que renasce das cinzas. Há, igualmente, o peso da realidade concreta e isso também faz a diferença para a identificação das pessoas. Afinal, estamos a falar de um menino negligenciado que, num mundo à parte, tenta encontrar a força e fazer o confronto com os seus verdadeiros vilões. Em suma, a criatividade, mesmo se a deixarmos à solta, acaba sempre por estabelecer o confronto connosco próprios ou recorrer a pilares que já fazem parte do nosso próprio mundo.  

Severus Snape, sem dúvida a personagem mais complexa deste universo, faz a ponte perfeita com o fantástico, a dualidade concreta do bom e do mau que todos sentimos e é, também ela, cheia de referências a vertentes artísticas da nossa história real e do passado. Alan Rickman não deixou de perceber isso e é interessante saber como, por exemplo, contribuiu para a criação do guarda-roupa da personagem que, ao contrário das outros, manteve-se sempre o mesmo ao longo dos filmes. A ideia das mangas compridas e apertadas do fato preto, tal como a ideia da quantidade enorme de botões, partiu do actor. Segundo o próprio Alan Rickman, “uma manga que termine aqui [aponta para o pulso] é diferente de uma manga que termine aqui [aponta para o meio da palma da mão]. Nessa mesma entrevista, acrescentou que esse aspecto rígido das roupas era importa para a forma como havia de interpretar Snape [a ideia de se estar demasiado abotoado, comprimido, cingido, escondido, como alguém que se esforça por esconder algo]. A influência, como confirmou, era claramente vitoriana (das eras mais puritanas de Inglaterra, mesmo a nível do vestuário), que teve lugar entre a primeira metade do século XIX, anos trinta, e o início do século XX (1901) – a era que correspondeu ao reinado da Rainha Vitória. Curioso observar que esse é o período histórico que também corresponde ao romantismo enquanto vertente artística e literária. Almeida Garrett, por exemplo, publicaria pela primeira ‘Dona Branca’ em 1826 e, por sua vez, ‘Frei Luís de Sousa’ em 1844 (encenado em palco um ano antes, 1943). 

Se olharmos com atenção, Severus Snape é a caricatura perfeita para se explicar numa aula as características de uma personagem provinda do romantismo – tez translúcida, ar carregado, cabelo negro, roupas negras, uma personalidade atormentada e uma vida cheia de dramatismo. Na verdade, estas características já tinham como base o estilo literário gótico, do século XVIII, que, por sua vez, bebia inspiração no estilo arquitectónico gótico do século XIV. O género fantástico, enquanto terror, que surgiu quase em paralelo com o romantismo, tem muito em comum com o género e, por conseguinte, resgata influências do estilo gótico. Autores como Mary Shelley (criadora de ‘Frankenstein’) ou John William Polidori, que introduziu o conceito de ‘vampiro’ no género fantástico ou de terror, também fomentavam as suas associações ao romantismo e, ainda hoje, podemos ver a influência e as marcas directas destes autores em muitas obras contemporâneas. 

É engraçado como a personagem Snape resgata muitas destas características e, se falarmos do impacto de autores como Polidori, por exemplo, ainda mais engraçado se torna (ainda que não o seja) se pesquisarmos “Snape/vampiro” no Google e descobrirmos que há toda uma discussão, entre os fãs, em torno da questão se Snape seria, na verdade, um vampiro ou não. Tudo porque, lá está, tudo nesta personagem respira influências da era vitoriana, principalmente do início da primeira metade do século XIX. As sugestões de vestuário avançadas por Rickman tiveram em conta tudo isto e permitiram, ao público, usufruir melhor da interpretação do actor, no ecrã. Estas opções, as questão dos botões, mangas e outros pormenores, foram também importantes para Rickman encarnar Severus Snape.

“Turn to page 394”

Será fácil, talvez, para um actor ficar conotado à declamação de uma deixa ou de uma frase cheia de significado ou sentido, mas não tanto, se calhar, a uma frase tão simples como “Turn to page 394”, como quem diz, “abram na página 394”. Quem viu o filme ‘Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban’, o terceiro da saga, certamente lembrar-se-á da cena em que a personagem interpretada por Alan Rickman irrompe sala de aula adentro enquanto fecha com estrondo, com a sua varinha, as janelas e lança a seguinte ordem para os seus alunos, “abram na página 394”. À força da entoação desta frase que ficou colada à personagem e ao actor, soma-se ainda uma pequena palavra, “always”, que significa “sempre”, dita pela mesma personagem. É o que os mais novos têm presente acerca do actor, mas esta capacidade de fazer sobressair o dramático (em termos dramatúrgicos) do que parece, a priori, simples, não é nova em Rickman. Basta recordar que na interpretação de ‘Xerife de Nottingham’, que lhe valeu um BAFTA, também tornou icónica a frase “and call off Christmas”, “e cancela o Natal”. 

A personagem de Severus Snape é bastante teatral, a mais teatral e dramática de todas as personagens de ‘Harry Potter’. Por isso é que funcionou tão bem em Alan Rickman, devido à sua experiência em teatro. Já se abordou a forma como o timbre particular da sua voz era um dos seu trunfos principais: a sua voz profunda e a forma particular como fazia uso das pausas, enquanto dizia as suas falas, para aumentar o impacto do que é dito. Isto requer muito treino teatral –  o sentido de timing perfeito da espera entre o ouvir e o responder, a capacidade de saber dizer uma frase no tempo perfeito e, com isso, fazer com que “ca-da sí-la-ba se-ja per-cep-tí-vel.”

A postura e as expressões graves do olhar e da face também revelam o quão teatral a personagem é e o quanto de teatral Alan Rickman imprimiu em Snape. A expressão do enigma, o olhar de quem esconde, uma melancolia permanente expressa, a ameaça, a ambivalência, a sensação de impotência face aos acontecimentos e muito mais. Todos estes pormenores não passaram despercebidos e ajudaram, e muito, a construir e a fazer jus a esta personagem no ecrã, por incentivo do actor. Independentemente de Snape não ser das personagens com mais tempo de ecrã em ‘Harry Potter’, a verdade é que o seu talento de representar, mesmo quando não tem deixas para dizer, ajudou-o a roubar muitas cenas, mesmo quando aparecia como secundário. 

A verdade é que nem sempre Rickman mostrou satisfação com a forma como Snape foi adaptado para o grande ecrã e interveio em defesa da sua personagem. Foi o que se descobriu através de cartas e bilhetes do seu espólio pessoal, após a sua morte, em 2016, por neoplasia.

A verdade é que nos filmes, embora o actor tenha desempenhado um trabalho perfeito, a personagem só começou a ganhar mais relevância nos filmes finais. Rickman começou, então, a questionar o motivo porque algumas partes centrais dos livros acabariam por ser cortadas. Por isso mesmo, pode-se ler numa carta sua dirigida ao realizador, “É como se David Yates tivesse decidido que Snape não é mais interessante no esquema das coisas, isto é, apelo para o público adolescente”

Independentemente dos filmes de ‘Harry Potter’ fazerem parte de grandes produções preparadas para rentabilizar, é justo referir o verdadeiro empenho do actor em extrair o que de melhor a sua personagem tinha. Fê-lo sem grandes egos, aliás, Rickman nunca deixou que o seu ego de actor se sobrepusesse ao que realmente conta e é importante – a personagem e o verdadeiro respeito e classe para com o público. Daí a sua atitude mais recatada e evasiva perante a imprensa. Como exemplo, Alan foi o actor a quem J. K. Rowling contou mais pormenores acerca da personagem, dando-lhe a pista fulcral que faria entender toda a sua conduta. Alan nunca revelou qual foi essa pista mesmo depois do último filme da saga. Isso só foi avançado pela escritora após a morte do actor. Deu a cara e a voz mais de 60 interpretações, incluindo a lagarta de ‘Alice no País das Maravilhas’, o juiz de ‘Sweeney Todd’, o presidente Ronald Regan de “O Modormo’, e o marido infiel de ‘Amor Acontece’ – todas elas diferentes, todas elas com o mesmo requinte, o mesmo charme e a boa sedução, tão característica da ‘English Rose’. 

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