Algumas questões sobre o documentário e outros tantos equívocos
A pedido de Maria João Rodrigues, Manuela Penafria, doutorada em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior e investigadora do Labcom.IPF (Unidade de Investigação Científica da Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior), respondeu sobre aquelas que poderão ser as principais questões, assim como os principais equívocos a respeito do filme documentário.
A eterna e velha questão: o que é um documentário? Ou, consequentemente, qual a diferença entre documentário e ficção?
Poderia aqui citar uma bibliografia imensa onde estas questões são discutidas. Mas, tendo em conta que ainda nenhuma definição é unanimemente aceite e, consequentemente, uma demarcação clara entre documentário e ficção não tem sido satisfatória nem contundente, o melhor modo de responder a uma questão é colocar-lhe outra ou outras questões. Assim, pergunto: quem beneficia da existência de uma definição para o documentário? A quem ou por que razão interessa uma separação entre documentário e ficção?
E a resposta poderá ser longa e apresentar ramificações. Uma definição e, consequentemente, uma separação clara entre documentário e ficção poderá interessar às escolas e estudantes de cinema, seja pela vontade de afirmação de uma identidade artística seja por necessidade de uma eficaz gestão dos recursos humanos e materiais. Mas, aos estudantes interessará menos que às escolas, pois o hibridismo é a imagem de marca da época atual. Para as escolas, por exemplo, a distribuição orçamental (quando e sempre que existe) é, em nome da diversidade, equitativa ou, pelo menos, incentivadora e promotora de diferentes géneros que representem a escola.
Mas, poderá interessar, também, a entidades financiadoras que não raro colocam um orçamento bem mais modesto para o documentário que para a ficção. Esta poderá ser mais dispendiosa pois, logo à partida, necessitará de cenários e de pagar a atores. Interessa aos festivais de cinema, às produtoras, às universidades que nas suas dissertações e teses incentivam à delimitação do objeto de estudo, etc. Mas, haverá sempre exceções, como o Festival Indie Lisboa que faz programação tendo em conta a duração (curtas e longas) e não o género.
Diversas serão as entidades ou pessoas para quem uma separação entre géneros é útil, seja por boas seja por menos boas motivações.
Mas, o meu propósito não é descartar nem esquivar-me à questão sobre a definição e separação entre géneros. No entanto, há aqui duas possibilidades: por um lado, dentro da Academia, a discussão revela alguma dificuldade em lidar com objetos de estudo de contornos indefinidos fazendo pouca justiça à efetiva prática cinematográfica; por outro lado, talvez por estarem libertos de exercícios académicos, os cineastas mais facilmente aceitam que na sua filmografia constem objetos indefinidos. Em certa medida todos os filmes o são. Todo e qualquer filme pode ser entendido como uma ficção uma vez que nenhum filme pode substituir, efetivamente, a experiência vivida de um acontecimento. E, de igual modo, todo e qualquer filme pode ser entendido como um documentário uma vez que é sempre cultural, política, social e/ou historicamente datado e reflete o modo de ser e viver de uma determinada época. A ficção é um documento.
Ainda que mantenha uma nebulosa sobre este equívoco, a melhor resposta que já encontrei é, precisamento, a de um cineasta. A propósito do seu filme Aquele querido mês de agosto (2008), Miguel Gomes afirma: “Documentário? Ficção? A meio deste filme vemos uma ponte: a ponte romana de Coja sobre o rio Alva, da qual se atira Paulo “Moleiro”. Sem querer parecer Confúcio, diria que de qualquer uma das margens que esta ponte une se avista perfeitamente a outra. E que o rio é sempre o mesmo.” [1] Por certo, aqui o rio é uma metáfora para “cinema” que possui duas margens, uma é o documentário a outra a ficção.
Ainda assim, dentro da Academia, Vivian Sobchack (apoiando-se em Jean-Pierre Meunier, da Université Catholique de Louvain, Bélgica) é quem melhor ilumina a questão: quando mais o espectador depende do ecrã para perceber e obter conhecimento sobre o que aí se passa, mais o filme se enquadra na classificação de “ficção” e, pelo contrário, quando menos o espectador depende do ecrã, mais próximo está o filme de ser um documentário. Tudo isto, independentemente da catalogação efetiva do filme.[2]
Em suma, no documentário há ficção e esta está impregnada de documentário. Por exemplo, podemos sempre ver os filmes de ficção científica como o melhor documento para acedermos ao imaginário sobre o espaço sideral e seus eventuais habitantes.
Quem gostar de cinema tanto se importa de ir ver um documentário como uma ficção. São os filmes que vêm assim catalogados. Ter os filmes, logo à partida, separados por catalogações é assumir que são os espectadores que estão catalogados. E um espectador é, sempre, antes e acima de tudo, alguém interessado em cinema.
Outra eterna e velha questão: qual a diferença entre documentário e reportagem?
A resposta mais imediata seria pela autoria ou subjetividade. No entanto, aos bons jornalistas é reconhecida uma marca, autoral ou subjetiva, própria sem que isso interfira no seu profissionalismo. Historicamente, desde os anos 30, década de ouro do Movimento Documentarista Britânico, a diferença reside, essencialmente, nos procedimentos adotados para abordarem o mundo quotidiano. O autor de uma reportagem deverá seguir pressupostos jornalísticos (apresentar o quem, o quando, o onde, o como e o porquê e adotar procedimentos considerados objetivos do ponto de vista jornalístico, como seja a apresentação do depoimento das diferentes pessoas envolvidas num mesmo assunto). Para além disso, o jornalista segue um código deontológico. Já no documentário, embora existam recursos que imediatamente lhe são associados (como o plano-sequência) não existe qualquer obrigatoriedade formal estabelecida à partida. Por outro lado, o documentarista não possui nenhum código deontológico escrito; a ética profissional está apenas dependente dos critérios de cada realizador. Se na reportagem existem um conjunto de procedimentos que devem ser aplicados, não dependentes do tema; no documentário é o tema que determina a forma. Documentário e reportagem tocam-se, mas/e/ou separam-se.
O que fazer para fazer um documentário?
Comecemos com uma questão para responder à questão: se não se sabe, com clareza, o que é um documentário, como é possível realizá-lo/produzi-lo? Possível resposta: partir, sempre, da observação daquilo que nos rodeia, seja o que nos é mais próximo, seja o que nos é mais distante. Observar é a primeira e melhor atitude que um realizador pode adotar, caso pretenda fazer um documentário. O ponto de partida é encontrar no mundo um qualquer aspeto que motive um filme. Para tal, a observação sobre o que existe ou acontece é fundamental. Se as imagens e sons de um documentário dizem respeito ao mundo, ao que é exterior e existe fora dessas imagens e sons – ou seja, à vida das pessoas e acontecimentos do mundo – fazer um documentário implica ter consciência que o material de trabalho do documentarista não é apenas o mundo, mas, também, as imagens e os sons que, por mais ligadas que estejam a esse mundo, possuem uma autonomia própria. E é essa relação, simultânea, de dependência e autonomia que é suposto ser a matéria-prima do realizador e equipa. A partir deste pressuposto a criação é livre.
Na história do cinema, qual foi o primeiro documentário?
Mais uma questão de difícil resposta, pelo menos, de uma resposta clara e definitiva. Supostamente, os irmãos Lumière inauguraram a vertente realista do cinema e Georges Méliès a ficção, o fantástico, a fantasia. No entanto, é possível um outro entendimento: os filmes Lumière já são, ao mesmo tempo, realistas e fantásticos. O que mostram em imagem, por exemplo, a saída dos operários da fábrica não são os próprios operários, mas uma imagem dos mesmos, uma sua reprodução, uma cópia; e essa reprodução, essa cópia, como sabemos, pelo menos, desde Magritte com “Ceci n’est pas un pipe” – legenda do quadro de um cachimbo – é, para o dizermos tendo em conta Méliès, uma fantasia, uma ficção. As imagens Lumière são, em simultâneo, realistas (porque a partir delas existe um reconhecimento cultural do que está em imagem) e uma ficção (a imagem, qualquer imagem é, logo à partida, um objeto autónomo em relação ao que mostra, um objeto criado). Por outro lado, a própria imagem é, por natureza, realista, independentemente de ser uma imagem que resulta de um evento encenado ou não encenado. Ao contrário da linguagem em que, por exemplo, a palavra “cão” nos pode fazer pensar em diferentes cães, em imagem, é aquele cão e não outro.
A ser assim, historicamente, a primeira ficção e o primeiro documentário são coincidentes.
Qual a atualidade do documentário?
O Youtube parece concretizar uma ideia muito cara ao documentario: tudo filmar. As páginas do Facebook rivalizam com as biografias e auto-biografias mais clássicas. E, hoje, mais que nunca, as imagens de arquivo que apenas repousavam nos arquivos oficiais, aumentaram exponencialmente. A Internet é, hoje, uma imensa base de dados de imagens e sons. Se o chamado “filme de compilação” ou “filme de montagem” sempre foi uma tradição do documentário e se, hoje, a noção de “imagem de arquivo” se alargou, é precisamente no documentário que procedimentos mais sofisticados de organização e re-organização de imagens e sons se podem encontrar ou servir de inspiração. A isto podemos acrescentar as novas obras que se designam de webdocumentário ou documentário interativo. Para organizar ou re-organizar o “caos” visual e sonoro atual é ao documentário que será útil recorrer. Mas outras manifestações se apresentam no atual panorama digital e interativo que prefiguram o desvio da realidade próprio da ficção: videojogos, realidade virtual,…
As questões aqui colocadas não esgotam aquelas que poderiam ser colocadas a respeito do documentário, outras seriam possíveis, por exemplo: quais os recursos cinematográficos que lhe são típicos; quais as suas características enquanto género; qual a sua efetiva importância na história e estética do cinema; por que razões a ética se encontra mais ligada ao documentário, etc. –, mas o que ressalta das questões colocadas é que as respetivas respostas nunca são claras; ou são evasivas ou apresentam apenas possibilidades de resposta. Porventura, talvez nenhuma questão tenha uma resposta clara. E, no caso do documentário, talvez isso aconteça porque, de facto, se trata de um filme indefinido por natureza ao qual se foram acrescentando alguns equívocos. São estes que evocarei a seguir.
Equívoco 1.
O termo “ficção” abarca, imediatamente, filmes diversos – mais não seja, diversos géneros, do western ao drama, da ficção científica ao thriller – já o termo “documentário” aparenta não ter essa abrangência, está sempre associado a um determinado tipo de filme, aquele que possui um tema de importância social, cultural ou política, um estilo sóbrio e um tom sério. Em poucas palavras: com falta de criatividade cinematográfica. Facilmente se aceita que a ficção se divide numa variedade imensa de filmes. O termo “ficção” celebra diferentes géneros e/ou interferência entre os mesmos. Já “documentário” parece ser um termo que esquece a sua diversidade para remeter para um filme que apenas os espectadores com responsabilidade ou consciência social, cultural ou política apreciam. Uma espécie de “diz-me que filmes vês, dir-te-ei quem és”. A diversidade e criatividade temática e formal do documentário é um facto. Mas, parece que ficção há muita, documentário há só um.
Equívoco 2.
Para denegrir ou mesmo insultar um documentário (ou quem o fez) facilmente se diz que é uma reportagem. Quando se pretende elogiá-lo, facilmente se diz que é bom porque parece mesmo uma ficção. Na ficção, um mau filme é um mau filme. E um bom filme é, justamente, um bom filme. No documentário, parece que é necessário convocar os “vizinhos” para suportar argumentos a favor e contra.
Equívoco 3.
Se um documentário tem uma imagem e um som cuidados, a dúvida se é mesmo um documentário surge com facilidade. Já na ficção, a pergunta: isto é mesmo uma ficção? não é ouvida com tanta frequência. Já a ficção se se aproxima da realidade, fá-lo, obviamente, de modo bem mais sofisticado que o documentário. Contudo, é no seio do próprio documentário que a ironia com ele próprio tem surgido com bastante criatividade, pelos filmes denominados mockumentary.
Equívoco 4.
É sempre preciso mais tempo para fazer um documentário que uma ficção. Esta afirmação tanto pode ser entendida como uma objeção (por falta de tempo, faz-se uma ficção) ou um elogio (dedicar ou deixar que um tema se desenvolva durante muito tempo é sempre melhor que apressar ou forçar a realidade). Já na ficção, praticamente tudo se controla ou pode controlar, incluindo os tempos de rodagem e montagem. E, um guião já previamente programado e definido colabora para uma economia de tempo. Sobre este equívoco, ironicamente, mais tempo parece não contradizer um outro equívoco já mencionado: documentário é sinónimo de menor orçamento.
Equívoco 5.
Um documentário representa a realidade. A ficção assume-se, desde logo, como um desvio da realidade e quando a ela se refere com maior ou menor evidência é elogiado. Um mapa não tem uma escala 1:1, não seria nada prático e nem por isso a sua veracidade é posta em causa.
Para terminar, algumas sugestões de visionamento, dez (as questões e os equívocos somados):
- Mr. Death, the rise and fall of Fred A. Leuchter (1999), de Errol Morris.
- Wolfpack (2015), de Crystal Moselle.
- El Dorado XXI (2016), de Salomé Lamas.
- Dark days (2000), de Marc Singer.
- Santiago (2007), de João Moreira Salles.
- Arraianos (2012), de Eloy Enciso.
- A mãe e o mar (2014), de Gonçalo Tocha.
- A imagem que falta (2013), Rithy Panh
- 33 (2002), de Kiko Goifman.
- Criados na Serra (2016), de Maria Inês Mesquita, André Rodrigues e João Pais da Silva.
Notas:
[1] In: “Nota do realizador | Miguel Gomes”, Doc’s Kingdom 2008. Disponível em: http://www.docskingdom.org/pt/arquivo/textos%20de%20apoio/2008mgomes.html
[2] Vivian Sobchack “Toward a phenomenology of nonfictional film experience. In J.M. Gaines & M. Renov (Eds.), Collecting visible evidence, University of Minnesota Press, 1999, pp. 241-254.
Nota: esta entrevista foi originalmente publicado em Septimaes, e é da autoria de Ricardo Costa e Maria João Rodrigues, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.