“Sisters With Transistors”: a paisagem electrónica perfeita para um documentário geek

por Sara Camilo,    30 Outubro, 2021
“Sisters With Transistors”: a paisagem electrónica perfeita para um documentário geek
Imagem do filme. © Anna Lena Films & Willow Glen. Fotografia de Peggy Weil
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Hoje em dia, a música electrónica está tão enraizada no nosso dia-a-dia que nem nos apercebemos que nem sempre foi assim… Trazemos, por isso, um documentário inquieto para os amantes da música e dos processos criativos.

“Sisters With Transistors”, um filme assinado pela realizadora Lisa Rovner, é uma homenagem às compositoras, músicas e inventoras de música electrónica nos seus primórdios. Lisa começa o documentário dizendo que “as mulheres foram esquecidas e retiradas da história, e que a história da mulher é a história do silêncio”. Na tentativa de mudar esta realidade, guia o espectador por uma abordagem expansiva sobre a criatividade, onde todos são bem-vindos.

Para todas as pessoas que ouvem música nas suas cabeças, este é o documentário que ajuda a amplificar ideias e novos conceitos. A história é contada através de imagens de arquivo, como uma colagem avant-garde. O filme é narrado pela voz suave de Laurie Anderson, que se mistura num tom subtil com a voz das outras artistas, como se fosse uma partitura muito bem combinada.

Somos embalados pelo mágico som de sintetizadores e também pela importância das pioneiras do século XX, destas mulheres que expandiram e conciliaram a tecnologia com a arte, numa fusão arrojada e criativa. A tecnologia veio trazer esta sensação de inovação e liberdade porque mexe com as estruturas de poder existentes, o que possibilitou criar uma peça criativa e apresentá-la directamente ao público sem ter que passar pela aprovação do mundo masculino. Isto trouxe a possibilidade de evolução e o traçar de novos caminhos na cultura musical, modificando linguagens e criando novas tecnologias à altura das suas necessidades criativas.

O mundo já não é tão silencioso e é nesta janela de oportunidade que entra a ideia de captar o som de um mundo electrificado e ruidoso. É aqui que Rovner apresenta individualmente o trabalho criativo de 10 mulheres.

O filme começa com Suzanne Ciani e o seu sintetizador Buchla, um instrumento que fala a mesma linguagem que ela, tem um som sensual, caloroso e sensitivo. As melodias emergem nos tons mais baixos e estáveis, ela reitera a ideia de que o som se move e é maleável, abrindo a possibilidade de novas dinâmicas de manipulação de energia. Ciani criou música para anúncios publicitários televisivos nos anos 80 e sofreu preconceitos, não pelas suas composições, mas por ser uma compositora mulher. Ciani foi a primeira mulher a compor uma banda sonora para um filme de Hollywood, “The Incredible Shrinking Woman”, e também a usar Patch Chords num sintetizador modular, antes de aparecer no “The David Letterman Show” com o seu Prophet-5, um sintetizador analógico e polifónico. 

Segue-se Clara Rockmore, que tocava um instrumento sem tocar nele. Esse é o virtuoso theremin, um instrumento electrónico tocado através do movimento das mãos no ar.

Clara Rockmore e o seu theremin

A matemática/compositora britânica Delia Derbyshire, reconhecida por fazer parte do BBC Radiophonic Workshop no pós-guerra e por ser a responsável pelo tema electrónico da série de ficção cientifica “Doctor Who”, foi influenciada pelos sons electrónicos das sirenes dos ataques aéreos dos nazis à Grã-Bretanha. Dizia que a música é a construção de sons individuais e, como tal, todos os sons possíveis podem ser criados. Os sons abstratos têm grande significado para as suas composições precisas, com a dose certa de ruído e loops. O seu trabalho influenciou artistas como Aphex Twin, The Chemical Brothers, etc…

Daphne Oram, também ela britânica e fundadora do BBC Radiophonic Workshop, tornou-se uma figura central no desenvolvimento e evolução da música electrónica, através do desenvolvimento do Oramics. Esta é uma técnica para criar sons electrónicos através do desenho escrito de música sobre celulóide. Oram foi ainda pioneira da musique concrète, “um tipo de composição musical que utiliza sons gravados como matéria-prima. Os sons são frequentemente modificados e usados em técnicas de montagem”. Tudo começou no pós-guerra, já que os escritores escreviam de forma diferente e tal requeria toda uma outra gama de novos sons que acompanhassem esta nova forma de expressão. Acreditava que, no fundo, todos os seres queriam representar alguma coisa de si mesmos…

Radigue, compositora parisiense também ela influenciada pelos sons das aeronaves e por pequenas grandes curiosidades como o som entre a voz e o microfone, manteve-se interessada por toda esta proposição sonora e cria o seu próprio diálogo com a estruturação de sons de motores. Trabalhou e criou essencialmente com o seu sintetizador modular APR 2500.

Pauline Oliveros, fundadora do San Francisco Tape Music Center e autora dos conceitos deep listening e sonic awareness, influenciou a escrita e criação de novas teorias musicais. Era fascinada pelo mistério que existe entre dois sons (“in between sounds”).

Maryanne Amacher, compositora norte-americana, expressava o seu interesse enquanto música que comunicava ideias, sensações de proximidade e distância. Todas as coisas vibram e produzem os seus próprios intra-sons, o que lhe gerava um grande entusiasmo pelo pensamento fora da composição.

Wendy Carlos foi uma artista transgénero reconhecida pelo seu percurso electrónico e fílmico. Ajudou a desenvolver o sintetizador Moog. O álbum Switched-On Bach, composto por peças de Johann Sebastian Bach tocadas em sintetizador Moog, ganhou popularidade no anos 70 e arrecadou alguns prémios Grammy. Foi a perfeita rampa de lançamento para Carlos, que compôs duas adaptações de música clássica sintetizada e música experimental para dois filmes de Kubrick: “The Shinning” e “A Clockwork Orange”. 

Para finalizar, e de uma forma mais geral, o documentário está muito bem conseguido, mesmo que peque pela falta de referências da música e dança negra e queer como influência fundamental para a música electronica. São narrativas sobre a história das mulheres nas artes, neste caso na música. Fala-nos de dicotomias de liberdade e rigidez, de rebelião e de rigor, da mudança na linguagem e tecnologia. Tem uma vertente sociológica grande, no que toca ao questionamento do espaço que a mulher ocupa no mundo e na memória. “Sisters With Transistors” é, sem dúvida, um documentário refrescante e muito geek que deixa ainda mais sede pelo conhecimento da música e dos sintetizadores.

Trailer do filme

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