Amas e escravas (e uma «peixeira» chamada Penélope)
Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.
O episódio da Odisseia em que a velha ama do herói o reconhece pela cicatriz quando lhe lava os pés é célebre na história da crítica literária: por um lado, Aristóteles elogiou Homero por ter omitido o episódio da cicatriz (o que levanta questões incómodas que comento na p. 560 da nova edição). Por outro lado, a cicatriz de Odisseu inspirou um dos capítulos mais fascinantes do famoso livro «Mimesis» de Erich Auerbach, publicado pela primeira vez em 1946.
O episódio ocorre no Canto 19 e oferece muitos aspectos curiosos à consideração de leitoras e leitores. Destes, o mais desagradável tem que ver com a personalidade do próprio herói do poema, que ameaça matar a ama que o amamentou e criou. Mas reflectirmos sobre essa maneira de tratar uma escrava leva-nos a pensar sobre as contradições inerentes ao estatuto desta ama entre as escravas – e a levantarmos perguntas para as quais o poema não nos dá resposta.
Uma diferença da minha nova tradução revista relativamente à anterior é que não contornei as palavras «escravo» e «escrava» com eufemismos como «servo» ou «criada». A questão dos escravos corresponde a um tema a que dou atenção nas notas, pois é uma questão que tem de ser enfrentada neste poema.
Na ordem social que a poesia homérica nos dá a ver, as escravas são propriedade sexual dos seus donos. Daí o tema recorrente na Odisseia a partir do Canto 16 das escravas que tiveram relações sexuais com os pretendentes de Penélope. Essas escravas, no entender do seu dono, são culpadas (nunca lhe ocorre que elas possam ter sido vítimas de abuso e de estupro por parte dos pretendentes) e condenadas por ele à morte no Canto 22.
A ama de Odisseu é uma escrava: isso está claro logo a partir do Canto 1, onde se explicita o preço que ela custou a Laertes, pai de Odisseu, que a comprou: vinte bois. Diz-se também que Laertes nunca abusou dela, pois «temia a ira da mulher». Mas se Laertes nunca teve relações sexuais com ela, como é que ela pôde amamentar Odisseu? Que ela amamentou Odisseu está explicitamente dito em 19.482; e que mais tarde a mesma ama amamentou Telémaco, filho de Odisseu, está dito em 1.435. Mas como terá ela engravidado, se Laertes, o seu dono, não teve relações sexuais com ela?
A vida de castidade forçada das escravas (ou a vida de submissão sexual ao dono) é indirectamente mostrada no poema como triste e deprimente (então não…) no caso de uma escrava e ama fenícia, cuja história é contada no Canto 15. É-nos dito que esta escrava estava a lavar roupa quando um homem estranho «se deitou com ela em amor, pois isto enfeitiça o espírito das mulheres, mesmo das que praticam boas acções» (15.420-422). Tão encantada ficou ela com esta experiência de sexo anónimo (o poeta explicita que foi só depois de copularem que os intervenientes disseram os nomes, situação que lembra analogias curiosas que não vou explorar aqui), que se prontificou a vender ao fenício, cuja performance sexual a enfeitiçara, o rapaz de quem ela era ama, em troca da passagem de barco que a levaria de novo da «Síria» (uma ilha, no fraco entender geográfico do poeta da Odisseia) à Fenícia.
Esta ama que vende o próprio menino que tem a seu cargo morre de repente (de enfarte?) na viagem e é atirada borda fora «como manjar para peixes e focas» pelos tripulantes (um dos quais o homem que a levara àquela situação). O pobre rapaz fica ali sozinho, depois de tamanho trauma, no barco dos traficantes de seres humanos, sendo depois vendido em Ítaca, onde mais tarde trabalhará como escravo que cuida das pocilgas. No entanto, tal como ele entrou na escravatura por via de uma escrava que o vendeu, como escravo ele vai comprar para si próprio um escravo (cf. 14.449), mas sem que Laertes e Penélope saibam da situação. Porquê esta mini escravocracia clandestina, protagonizada por alguém que é ele próprio escravo?
Seja como for, o tema dos escravos na Odisseia obriga-nos a olhar para as personagens principais com olhos diferentes. Telémaco é mesmo aquele príncipe brando, ele que enforca as escravas que tiveram relações sexuais com os pretendentes e corta os testículos ao escravo que insultara o pai? A «sensata» Penélope é a mesma que (em tom de «peixeira», como escreveu um comentador: ver p. 556) considera a pena de morte castigo adequado para uma escrava que está a ser malcriada? E será Odisseu assim tão admirável, ele que ameaça matar a escrava que o amamentou?
Como sempre, a poesia homérica coloca-nos perante questões que não se deixam estereotipar por meio de esquematizações fáceis.