‘Annihilation’ é um sci-fi atordoante e uma chapada de luva branca aos estúdios de Hollywood
A aura distinta de Annihilation começa logo na sua produção e distribuição. Alex Garland, o realizador, já havia dado provas das suas intenções em renovar um género sci-fi que parece actualmente estar demasiado preso a um fogo de artifício expansivo, com boas ideias, mas pouca alma (vem-nos à memória recente “Ghost in the Shell”, “Life” ou mesmo “Alien: Covenant”), e o livro de Jeff VanderMeer (que partilha o título com o filme) foi o ponto de partida ideal para isso.
Na realização de Alex Garland a sua única incursão é “Ex Machina”, um filme que demonstra precisamente isso: um minimalismo consciente e detalhista, mais focado no drama de personagem do que propriamente no entretenimento associado ao género. Essa preocupação com a construção de personagem é, de resto, algo que já havia demonstrado com os argumentos que escreveu para Danny Boyle em “28 Days Later” e “Sunshine”, filmes aos quais dramaticamente e visualmente este “Annihalation” por vezes não se coíbe de piscar o olho. Este forte cunho de autor, que em “Ex Machina” ainda escapa à “censura” de estúdio, e a consciência de que se está a fazer algo de diferente, minimalista, e potencialmente pouco apelativo a um público massificado, atirou “Annihilation” para fora das salas de cinema, estreando-o fora dos Estados Unidos na plataforma de streaming Netflix, confinando-o assim ao pequeno ecrã no nosso país.
Garland coloca assim um elenco composto por protagonistas femininas, cientistas, encabeçado por Natalie Portman e coadjuvado pela sempre emocionalmente rigorosa Jennifer Jason Leigh, a investigar uma misteriosa e secreta zona confinada onde caiu um asteróide e de onde nenhuma expedição militar de investigação regressou. Ao longo de todo o filme Garland opta por pautar o ambiente de forma soturna, contemplativa, quase depressiva, de forma sempre minimalista mas ambiciosa pelos temas que decide abordar. Portman é corolário do tom de todo o filme, corporizando essas sensações numa primeira camada, adensada pelas suas co-protagonistas. Não existe preocupação em criar heroínas ou espalhafato, mas antes em desenvolver um mistério visual e científico sensível. E corajosamente Garland tem a preocupação de não glorificar de forma gratuita este protagonismo no feminino, nem faz desse tipo de elenco uma bandeira para segundas intenções.
“Annihilation” é no feminino de forma natural, como deve ser, sem agendas escondidas ou comunicados sociais subliminares. Tal frontalidade terá que ser aplaudida. Essa não será, no entanto, a maior coragem de Garland. Antes o será a direcção argumentativa que escolhe para “Annihilation” (o título é algo infeliz, mas enfim). Com efeito, à medida que progredimos na misteriosa zona e no existencialismo das suas personagens, tudo a lembrar a obra-prima que é “Stalker” (1979) de Tarkosvky, claramente a maior influência de “Annihilation”, progredimos também na visceralidade de um horror sci-fi difícil de categorizar devido à sua originalidade, sempre com um peso e medida estóico, impassível de adornos e truques de encher o olho.
Chegando ao clímax do filme, percebemos talvez o momento em que a irredutível visão de Garland colide com a do estúdio e que ditou a novela que foi a sua distribuição. O realizador impõe, de forma decisiva, uma ausência de diálogo e uma mescla de efeitos sonoros desconcertantes e atordoantes, transportando o espectador para um “pesadelo” febril de difícil caracterização. Toda a descrição visual que é feita em tela nesse momento é algo que encontra em cinema pouco paralelo, e isso é lindíssimo: não só consegue ser um pecado impossível de resistir para os amantes de ficção científica, como é um objecto cinematográfico maravilhoso, quer dramaticamente, quer visualmente, para os amantes mais exigentes da sétima arte. É também uma chapada de luva branca para a visão mercantilista dos estúdios da Paramount que, inexplicavelmente, previram em “Annihilation” um flop de bilheteira.