Anton Gudim: o ilustrador russo que nos faz olhar ao espelho de uma forma desconcertante

por Daniel Dias,    6 Agosto, 2018
Anton Gudim: o ilustrador russo que nos faz olhar ao espelho de uma forma desconcertante
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Anton Gudim tem muitas dúvidas: vários dos nossos comportamentos e manias constituem para ele um mistério. Mas a verdade é que nem anda exactamente a tentar encontrar grandes respostas ou fórmulas infalíveis. Por enquanto, tenta apenas entender um pouco do que significa fazer parte e ser um membro activo da sociedade moderna. É certo que essa já é uma tarefa complicada e confusa por si só – mas o ilustrador confia no seu apurado e irónico sentido de humor para tornar a caminhada mais leve.

Não é só de perspicaz comentário social que se constrói o seu estilo, mas Anton comunica nas suas ilustrações as questões e ansiedades dos millennials de um modo tão preciso e simples, que é quase inevitável que essa sua habilidade resulte no principal cartão de visita para tantos curiosos que deitam olhos ao seu trabalho. O Shifter escreve que ele mistura no que faz uma crítica à contemporaneidade com a feliz e passiva aceitação da mesma – talvez seja mesmo essa a melhor descrição que se pode fazer do seu projecto.

O surrealismo é muito importante no seu vocabulário. Anton é um artista com um olho muito atento àquelas coisas pequenas que fazem parte do nosso quotidiano e passam despercebidas com facilidade. Ele gosta de pensar em acontecimentos ou rotinas mundanas e de as levar para um campo onde aquilo que é absurdo e abstracto tem espaço para se expressar.

 

Há também uma espécie de intertextualidade presente no seu processo criativo: o autor aproveita pequenos momentos para homenagear e dialogar com objectos artísticos que o influenciam. Isso pode observar-se na imagem de destaque deste artigo (que pisca o olho ao icónico vídeo de “Just”, dos Radiohead) e no homem transformado em borboleta que ele desenha – as referências a Franz Kafka e à sua Metamorfose servem como ponto de partida para Anton reflectir sobre a natureza desgastante do trabalho e o modo como ela se manifesta na sua própria realidade social. O ilustrador diz que na cidade de Moscovo ele ocupa mesmo uma parte avassaladora do dia-a-dia da comunidade. O descontentamento com o emprego e os baixos salários contribuem para a tristeza de muitos… mas para Anton esse nem é sequer o aspecto mais triste – algumas pessoas mal fazem ideia de que a vida pode ser vivida de uma forma diferente.

 

 

É um sentimento de apatia que Anton analisa em muitas das suas sarcásticas ilustrações. A apatia pode existir no trabalho mas também no nosso lazer – o artista desenha tanto o secretário passivo e cansado da vida como a pessoa completamente absorta no seu feed e alienada do que a rodeia. Os episódios que retrata comportam um humor quase perverso: a vontade de nos rirmos das suas personagens desajustadas e erráticas só choca com o facto de elas nos fazerem pensar com alguma seriedade sobre as nossas atitudes e os tipos de relacionamentos que mantemos com os nossos gadgets.

Anton chega a olhar para esses relacionamentos como tóxicos nalgumas das suas ilustrações mais pessimistas, mas o artista não pensa necessariamente nas redes sociais como uma coisa maléfica ou de vilões. A sátira afiada não é usada para as condenar: ela serve para ele se estudar a si mesmo e para nós nos podermos ver ao espelho de um modo honesto. Falámos com o autor para melhor se saber aquilo que pensa sobre estes temas – abaixo seguem as suas palavras.

A vida está cheia de diferentes cores e texturas – eu acho que ignorar os seus tons mais escuros seria um erro. A figura que mostra as quatro pessoas à espera do autocarro é uma que explora esses tons… Mas eu queria ir além daquele cliché óbvio que fala da tecnologia como um vício e um nó no pescoço. Eu ali quis falar sobre aquilo que está dentro de nós – os pensamentos depressivos ou sombrios que carregamos connosco. Tendemos a esconder essas coisas de vista, e quando assim é, torna-se difícil reparar logo no que está mal.

A verdade é que eu acho que os seres humanos sempre foram propensos a vícios de algum tipo. Se o progresso tecnológico não tivesse disparado como disparou, teríamos certamente encontrado outra coisa em que nos viciarmos. Nós todos procuramos o que nos traz conforto e o que nos é conveniente – faz parte de quem somos.

É interessante pensar no modo como usamos as redes sociais (e no que isso pode dizer sobre nós). E também é importante pensar na maneira como elas podem influenciar as nossas interacções face-a-face e as nossas relações com quem nos é querido. Mas acho que tudo isso varia muito de uma pessoa para a outra… Toda a gente precisará de receber a sua “dose” de atenção. Não devemos resumir os nossos problemas a meros debates sobre dependências tecnológicas – precisamos de nos voltar para psicologia mais básica e ter em conta questões como: por que motivo é que somos todos tão dependentes da validação dos outros?

Eu acabo por pensar um pouco nessa pergunta quando faço a ilustração da rapariga com o carro a arder. Essa ilustração foi a minha forma de reagir a selfies em que vi as pessoas a mostrarem risos falsos. É como se todas elas estivessem a dizer algo por dentro como: “Olhem só, a minha vida não é tão má assim, eu tenho um carro e ando sempre bem-disposta. Não tenho bem a certeza se sou feliz de verdade, mas preciso de parecer feliz na fotografia porque preciso da vossa validação”. Eu publico poucas coisas nas minhas redes, mas isso é só porque não sinto necessidade de colocar lá mais do que o que já coloco. Se quiser partilhar impressões sobre uma viagem que tenha feito ou pequenos episódios que acontecem no meu dia-a-dia, uso as stories no Instagram, mas a única coisa que partilho a sério é o meu trabalho.

No fim de contas, eu olho para as redes de uma forma muito simples: são um conceito com evidentes prós e contras. Eu uso-as para partilhar o meu trabalho e saber o que as pessoas pensam dele. Esse é o grande “pró” que me faz querer continuar a usá-las.

O meu trabalho é sobretudo um veículo para me expressar e um self-study. O meu principal objectivo talvez seja o de motivar as pessoas a se perceberem a elas próprias enquanto seres em construção. Gostava que a arte as ajudasse a entender melhor as suas vidas. Andamos todos a tentar aprender… e a melhor forma de o fazermos é juntos.

Podes seguir o trabalho de Anton Gudim na sua página de Instagram.

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