António Guterres relembra tráfico transatlântico de escravos e lamenta racismo sistémico atual

por Lusa,    25 Março, 2025
António Guterres relembra tráfico transatlântico de escravos e lamenta racismo sistémico atual
Fotografia de Eric Bridiers – United States Mission Geneva
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O secretário-geral da ONU, António Guterres, relembrou hoje o tráfico transatlântico de escravos, prática que classificou como “uma mancha indelével na consciência da humanidade”, lamentando que o “racismo sistémico” ainda persista atualmente em instituições, culturas e sistemas sociais.  

Guterres discursava perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), que hoje assinala o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Escravos, e recordou que por mais de quatro séculos, africanos foram “escravizados, sequestrados, traficados, desumanizados, abusados e explorados”. 

“A profundidade e a escala da crueldade, desumanidade e depravação dessa prática são incompreensíveis. Assim também é o sofrimento, o medo, a dor e a miséria suportados por milhões de pessoas exploradas por lucro”, afirmou, admitindo que os impactos resultaram em famílias dilaceradas e comunidades dizimadas. 

“Lamento profundamente que vários países — incluindo o meu — se tenham envolvido nesse comércio imoral”, sublinhou Guterres, referindo o papel de Portugal nesse sistema. 

O ex-primeiro-ministro português criticou o comércio “movido pela ganância e construído sobre mentiras — particularmente a mentira da supremacia branca —, um comércio possibilitado por seguradoras, banqueiros, companhias de navegação, sistemas legais e muito mais, que viu indivíduos, instituições e corporações acumularem riquezas inimagináveis às custas do sofrimento humano”. 

O líder da ONU lembrou que quando a escravidão foi oficialmente abolida, não foram os escravizados que foram compensados, mas sim os escravizadores, que receberam reparações equivalentes a milhares de milhões de dólares. 

“Numa reviravolta ainda mais cruel, alguns escravos foram forçados a pagar indemnizações”, lamentou Guterres na cerimónia. 

Numa reflexão sobre a atualidade, o secretário-geral afirmou que os legados duradouros da escravidão e do colonialismo ainda estão presentes no mundo e pediu que se fortaleça a luta contra esses males. 

“Os lucros obscenos derivados da escravidão e as ideologias racistas que sustentavam o comércio ainda estão connosco. O racismo sistémico foi incorporado em instituições, culturas e sistemas sociais. E a exclusão profundamente enraizada, a discriminação racial e a violência continuam a minar a capacidade de muitas pessoas de ascendência africana de prosperar e atingir o seu potencial máximo”, reforçou.
 
Guterres afirmou que graças ao trabalho incansável de líderes e comunidades afetadas, algumas instituições e Estados estão a tomar medidas para reconhecer e abordar os impactos do seu passado colonial. “É um começo. Mas precisamos de muito mais”, frisou. 

Além de instar os países a cumprir as suas obrigações internacionais, Guterres pediu que os líderes empresariais promovam a igualdade e combatam o racismo e que a sociedade civil continue a pressionar por justiça e se posicione contra o racismo onde e quando surgir. 

Na cerimónia de hoje na sede da ONU, em Nova Iorque, esteve também presente Salome Agbaroji, uma jovem norte-americana filha de pais nigerianos e vencedora do Prémio Nacional de Poesia Jovem de 2023, que lembrou que “a segregação, a gentrificação e a discriminação habitacional em todo o mundo contribuem insidiosamente para as disparidades raciais”. 

Agbaroji comparou essas atitudes a “sistemas de racismo institucionalizado patrocinados pelo Estado” e observou que muitas pessoas negras como ela são “desqualificadas pela cor da pele antes mesmo de colocarem os pés na porta, assumindo a sua incompetência”. 

Também o escritor nigeriano Wole Soyinka (vencedor do Prémio Nobel de Literatura em 1986) participou no evento e fez um discurso mais literário, sugerindo que a escravidão deveria ser sempre lembrada através de exposições dinâmicas que destaquem o que significou como “história interrompida de um continente (África)”. 

Essas exposições, que chamou de “o navio da escravidão” — já que teriam um caráter itinerante, de capital em capital —, não deveriam apenas recolher objetos saqueados do continente africano, mas também estar abertas às criações da “diáspora africana”. 

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