Arde-me a alma também em cada hectare
Dia 16 de Agosto de 2020. Tarde solarenga e convidativa a banhos numa das belas praias fluviais que o concelho do Fundão tem ao dispor dos seus habitantes e de quem o visita. Decido-me por ir em família a Janeiro de Cima, ao Parque Fluvial da Lavandeira, uma praia fluvial incrível que entre trilhos e caminhos liga os concelhos do Fundão e de Pampilhosa da Serra, separados ali apenas por uma ponte em madeira. Curiosamente é ali naquela ponte que se forma uma invisível divisão entre os distritos de Castelo Branco e de Coimbra, no que divide Janeiro de Cima e Janeiro de Baixo respetivamente, e que prova que as fronteiras (maiores ou menores) residem dentro das nossas cabeças que têm dificuldade em enxergar realidades maiores do que as que nos ensinaram.
Mas o caminho… Esse… Dói. Magoa. Mexe de uma forma que em palavras parecerá sempre menos do que aquilo que é na verdade. Hectares e hectares de terra queimada, de caruma, de terra negra que ali não pertence como se nos tivesse sido imposta. Árvores queimadas sem fim, de um lado e do outro. Conseguimos distinguir bem a realidade que existia e aquela que agora existe, lado a lado, e entendemos o efeito negativo que o ser humano e a sua ganância conseguem causar ao mundo que nos acolheu e à paisagem que sempre nos deu tanto sem pedir assim tanto em troca. De janelas abertas sinto ainda o cheiro forte a queimado e a incêndio. Cheiro esse que infelizmente tem vindo a marcar os últimos verões da nossa região. Cheiro esse que se tornou hábito quando devia ser ele a verdadeira exceção.
Compreendo a indignação de quem quer penas mais severas para incendiários. A raiva que se consegue criar em relação a alguém que destrói tudo o que outros lutam para manter. Compreendo a dor de quem tem casas tão perto das chamas como aquelas que vi nesse domingo e que teme constantemente pelos seus bens e por tudo o que conseguiu reunir entre quatro paredes por uma vida inteira. Mas tenho também a sensação de que o problema não está apenas aí, e que se calhar essa é a última forma de o resolver. Pensar em resolver o problema depois de este acontecer em vez de o tentar evitar seria como não ensinar os miúdos a nadar e a terem cuidados dentro de água e depois investir em mais nadadores-salvadores para os poderem socorrer. A prevenção evita os problemas, o seu socorro apenas remedia o que está feito, mas não evita que aconteça novamente. E a prevenção não se pode centrar apenas em aumentar a vigilância e a limpeza de terrenos e faixas, ou mesmo proibir a plantação de eucaliptos, que são de ignição muito rápida. Ajuda e de que maneira obviamente, mas é preciso mudar o paradigma que tem levado à existência de tantos incêndios fruto de fogo-posto atualmente. E não me parece que agravamento de penas venha a demover quem o faz de o fazer novamente.
Queira-se ou não, os incêndios são um negócio atualmente por diversos motivos, mas com uma realidade em comum: é mais fácil criar investimentos que tenham efeitos nefastos para a natureza em zonas de floresta e de mato se as mesmas estiverem ardidas. Ou são um negócio porque a lenha ardida perde valor e é vendida muito mais barata do que seria em condições normais, o que aumenta a sua procura. Ou porque é mais fácil nessas condições conseguir aprovações para construir novos parques eólicos, que tantas vezes têm os pedidos pendentes. Ou porque pode desbloquear pedidos de concessão para explorações mineiras que estão em banho-maria há anos à espera de estudos de impacto ambiental que não surgem (porque será pergunto eu?). Em relação a este assunto, vejamos a imagem abaixo. A mesma, divulgada por um movimento de cidadãos da zona ardida em Janeiro de Cima e outras freguesias da mesma zona, mostra a área do pedido de concessão para prospeção e pesquisa de lítio realizado em 2019 por parte da FMG EXPLORATION PTY LTD, que pode ser verificado oficialmente aqui. Nesta mesma área, a imagem mostra de forma sobreposta a área ardida nos três incêndios que já agastaram a mesma região no ano de 2020. Podemos então verificar que, coincidência ou não como denunciam estes cidadãos na imagem, a área coincide por completo com a área do pedido de concessão.
Meras suspeitas ou um verdadeiro lobby montado à volta dos incêndios em Portugal, isso caberá às investigações em curso descobrir. No entanto, é aqui que o Estado tem de ter um papel preponderante e ativo em evitar que situações destas se repitam. E o segredo não está apenas no reforço de meios de combate, mas em cortar o mal pela raiz. Não digam que a ideia partiu de mim, porque já muitos a defendemos, mas a mesma é cada vez mais urgente: inutilizar a área ardida por um período de 10 ou mais anos. Ou seja, toda a área que fosse ardida em Portugal ficar impossibilitada de ser usada ou tocada para qualquer que fosse o fim durante 10 ou mais anos. Não poderia ser retirada a madeira para venda, não poderia ser instalado nenhum parque eólico, não poderia ser construído nenhum empreendimento turístico, não poderia existir nenhuma exploração mineira. Nada. Ficaria tal e qual como está. E o número de incêndios florestais por fogo-posto seria reduzido de forma drástica. Retirar valor à ação e torná-la inútil é a melhor forma de se acabar com ela no futuro. E às vezes para problemas tão grandes há soluções tão simples que resultam, mas que são evitadas por mexerem com coisas que não controlamos. Mas que temos de voltar a controlar.
Entretanto, vai-me ardendo a alma também em cada hectare. Uma terra que também é minha e que arde aos meus olhos num sentimento de impotência total de quem nada pode fazer para o evitar. Um sentimento de coração apertado quando estamos longe e nos dizem que mais um pedaço da paisagem que marca as nossas vidas está a ser levado por interesses que o dinheiro nunca devia comprar.
Um pedaço que é meu, que é de todos nós. E que nos é roubado de mansinho para que não possamos notar. Viver no Interior, na sua paz de espírito e na sua pureza ainda tão natural não pode ser um bem que damos como adquirido até que sentimos que o perdemos quando já não há como desfazer o que foi feito no entretanto. Se pagamos a interioridade quando somos esquecidos, que não sejamos lembrados apenas quando é para sermos usados.
Arde-me a alma também em cada hectare.
Crónica de Fernando Gil Teixeira
Licenciado em Direito que rapidamente se rendeu ao mundo da comunicação e do reino animal. Aos 24 anos é jornalista e técnico de comunicação ambiental