“As Bruxas de Salém”, encenada por Nuno Cardoso: a histeria coletiva, o aproveitamento pessoal e o radicalismo
A beleza do interior do edifício e em especial da sala principal é motivo suficiente para visitar o Teatro Nacional São João que tem este dom de nos fascinar, de nos transportar para um universo diferente sempre que nele entramos. O ter oportunidade de desligar deste mundo durante três horas para ver explorado em cena, em português, um texto de Arthur Miller é a desculpa perfeita para nos fazer mudar de universo num domingo à tarde. Leram bem, cerca de três horas, com um intervalo pelo meio. Três horas que mal se notam, mas não vamos dizer-vos que é uma peça de teatro fácil de ver, em que nos sentamos e ficamos à espera de ser entretidos pelos atores, cenografia ou efeitos especiais.
“As Bruxas de Salém” é uma peça que exige atenção constante. O texto é direto e de palavras fáceis de entender, mas cada frase pode ser uma revelação nova sobre os traços mais ocultos dos personagens e reclama ser ouvida.
A história, baseada em factos verídicos, começa com um acontecimento misterioso com traços paranormais que gera no público uma grande curiosidade e, na localidade de Salém, uma grande discórdia. Ao longo da trama é abandonado o mistério e esse lado paranormal e começam a tratar-se temas muito mais “terrenos”: a histeria coletiva, o aproveitamento pessoal de situações prejudiciais a outras pessoas, profundas questões éticas e morais e o radicalismo. Coisas tão na ordem do dia que nem parece que passaram 70 anos desde que foi escrita ou coisas tão na ordem do dia que parece que a humanidade repete ciclicamente os mesmos erros. De resto, a peça foi escrita, como já referido, com apoio nos acontecimentos verídicos de 1692/93 em Salém, para falar do radicalismo sentido na época de Joseph McCarthy, senador por Wisconsin nos anos 1950 que acabou mesmo por dar origem ao termo Macarthismo: a prática de acusar alguém de subversão ou de traição.
É uma encenação que, além de alguns momentos de cinema, filmados com os mesmos atores, que enriquecem e contextualizam, conta com poucos artifícios, concentrando-se no excelente desempenho dos atores com destaque para Pedro Frias como John Proctor. Existem pouquíssimos objetos e o palco mantém-se quase inalterado durante todas as cenas. Os figurinos misturam-se entre o contemporâneo e o antigo, deixando em aberto o lugar da encenação no tempo, e a cenografia é simbólica contando com o palco dividido em três níveis de altura e vários postes de eletricidade antigos com múltiplos significados que nunca são explícitos e que dependem da leitura individual do espetador: podem representar a forca, a prisão, a cruz, a floresta, a noite, etc.
Vale a pena sair de casa, mergulhar no universo dourado do Teatro Nacional São João, entrar numa sala repleta de pessoas (nós encontrámos casa cheia) que vão ficar atentas a uma mesma coisa, desligar os telemóveis, e ficar quase três horas sem pensar em nada além da perversa história que se desenrola em palco e que no final nos deixa meio colados à cadeira com mais perguntas que respostas. Perguntas sobre os lados mais complexos e obscuros dos outros, dos movimentos coletivos que tão facilmente se tornam radicalizados e o pior: perguntas sobre aquilo que somos e que escondemos de nós mesmos.
“As Bruxas de Salém” com texto de Arthur Miller é encenada por Nuno Cardoso, atual diretor do Teatro Nacional São João (Porto) onde estará em cena até dia 2 de Abril e de onde partirá para a Roménia para depois voltar a Vila Real (6 de Maio), Lisboa (29 e 30 de Junho), Aveiro (30 Setembro), Braga (19 e 20 de Outubro) e Santiago de Compostela (Setembro).
Ana Brandão, Carolina Amaral, Joana Carvalho, Jorge Mota, Lisa Reis, Mário Santos, Nuno Nunes, Paulo Freixinho, Patrícia Queirós, Pedro Frias e Sérgio Sá Cunha compõem o elenco desta peça.