As condições de trabalho dos tradutores de audiovisuais: um filme de precariedade e baixos rendimentos
Quase todos vemos séries, documentários, filmes e outros tipos de conteúdo audiovisual. Segundo um estudo da Marktest, em 2022, o número de utilizadores de plataformas de streaming fixava-se nos 44,1% da população portuguesa. Outro estudo, da Fortune Business Insights, estimava que, a nível global, o mercado de streaming de vídeo fosse valer 473,4 mil milhões de dólares nesse mesmo ano. No entanto, os conteúdos produzidos e distribuídos pelas grandes empresas de entretenimento e pelos grandes estúdios de cinema e televisão nunca teriam um alcance global sem o trabalho dos tradutores de audiovisuais. E, por conseguinte, sem o trabalho dos tradutores de audiovisuais, essas empresas e esses estúdios nunca conseguiriam obter as receitas astronómicas que obtêm. Sem a tradução, os espectadores que não dominam a língua de partida (ou língua original) de um determinado conteúdo audiovisual não o conseguem compreender e, como tal, não têm interesse em vê-lo.
Dado o papel fundamental que a tradução desempenha no sucesso artístico e comercial dos conteúdos audiovisuais a nível internacional, o leitor poderia supor que os tradutores de audiovisuais têm condições de trabalho e remunerações fantásticas. Spoiler alert: não é esse o caso.
Segundo os resultados de um inquérito sobre as condições de trabalho dos tradutores de audiovisuais europeus realizado entre 2022 e 2023 pela AVTE – Audiovisual Translators Europe, a federação de associações de tradutores de audiovisuais europeias, 61% dos tradutores de audiovisuais europeus têm um rendimento igual ou inferior ao salário mediano do seu país. Se tivermos em conta que se trata de uma profissão que requer um nível elevado de especialização e de qualificações (68% dos inquiridos possuíam um grau académico de mestre ou superior), a discrepância entre aquilo que seria uma remuneração justa e aquilo que os tradutores recebem efectivamente torna-se ainda mais evidente. No que toca à realidade portuguesa, se considerarmos o valor médio que os tradutores recebem por minuto de vídeo (é essa, por norma, a unidade de pagamento), concluímos que um tradutor experiente, isto é, que consiga traduzir, legendar e rever cerca de 40 minutos de vídeo em oito horas, ganha 7,5€ por hora, o que é menos de metade da remuneração média portuguesa. Contudo, é importante ressalvar que, se se tratar de um vídeo com linguagem muito técnica (termos de medicina ou direito, por exemplo), com muito diálogo ou que exija um maior esforço criativo (ex.: recriar piadas em conteúdos humorísticos), o tradutor pode demorar muito mais tempo a concluir um projecto com o mesmo número de minutos, sem que esta dificuldade acrescida resulte num valor por minuto mais elevado.
Outro dos grandes problemas dos tradutores de audiovisuais é a precariedade e falta de protecção social. De acordo com o inquérito da AVTE, a esmagadora maioria dos tradutores de audiovisuais europeus trabalha por conta própria (95% dos inquiridos), ou seja, não tem um contrato de trabalho. Como tal, não é de surpreender que 64% dos inquiridos tenham afirmado não ter acesso a qualquer regime de protecção em caso de desemprego e que 22% tenham respondido que não sabem se têm direito a esse tipo de protecção. Em Portugal, os trabalhadores independentes que obtenham de uma única entidade mais de 50% dos seus rendimentos no mesmo ano civil têm direito à proteção no desemprego, através do Subsídio por Cessação de Actividade. No entanto, a lei não é clara relativamente à possibilidade de o trabalhador receber o subsídio caso essa entidade seja estrangeira, por exemplo. Além disso, a maioria dos tradutores freelancers trabalha para vários clientes, o que resulta numa menor concentração dos rendimentos numa só entidade contratante, inviabilizando o acesso a protecção em caso de períodos mais extensos de inactividade não imputáveis ao trabalhador.
A baixa remuneração e a precariedade ajudam também a explicar o facto de 53% dos tradutores de audiovisuais europeus tirarem menos de três semanas de “férias” por ano, sendo que a média europeia é de 21 dias de férias pagas e 12 feriados (escrevo férias entre aspas propositadamente, já que os freelancers não têm direito a férias ou feriados pagos). Ou seja, para compensarem os baixos rendimentos, a maioria dos tradutores vê-se obrigada a trabalhar mais dias e a descansar menos, o que ameaça a sua vida familiar, o equilíbrio entre a sua vida profissional e pessoal, o seu bem-estar e a sua saúde mental.
Perante tudo isto, o que é que os tradutores de audiovisuais podem fazer para melhorarem as suas condições laborais? Em primeiro lugar, devem realçar o papel preponderante que têm na indústria do entretenimento e no sector da cultura. Sem eles, séries como Game of Thrones ou Peaky Blinders nunca teriam tido o impacto que tiveram a nível mundial e gigantes do entretenimento como a Netflix, a Warner Bros. ou a Disney nunca veriam uma parte substancial dos milhares de milhões de lucro que registam anualmente. Mas, mais do que isso, devem reivindicar remunerações e condições de trabalho que reflitam essa preponderância ou que, no mínimo, lhes permitam ter uma vida digna, com direito ao descanso e ao lazer. À semelhança do que foi feito pelo sindicato Writers Guild of America (WGA), nos EUA, que, ao fim de cinco meses de greve, conseguiu um acordo histórico com a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), a associação que representa os grandes estúdios e empresas de streaming como a Paramount, a Sony, a Universal Pictures, a Disney, a Warner Bros., a Netflix e a Amazon, impondo limites ao uso da inteligência artificial na escrita de guiões, garantindo aumentos anuais dos valores mínimos pagos aos argumentistas superiores aos propostos inicialmente pelos grandes estúdios e forçando as plataformas de streaming a pagar valores adicionais (os chamados residuals) caso os filmes ou as séries em que os argumentistas trabalhem sejam vistos por uma determinada percentagem de subscritores num determinado período de tempo. O SAG-AFTRA, o sindicato dos actores e artistas de rádio e televisão, também acabou de aprovar um contrato negociado com a AMPTP que garante aumentos salariais, uma melhor compensação com o streaming e uma maior protecção relativamente à inteligência artificial, após quase quatro meses de greve, parte deles ao lado do WGA. Estes acordos, apesar de não serem perfeitos e de terem sido criticados por alguns trabalhadores, sobretudo o do SAG-AFTRA, no que toca à protecção contra o uso inteligência artificial, representam um avanço claro relativamente às propostas iniciais da AMPTP.
Embora as greves do WGA e do SAG-AFTRA sejam inspiradoras e nos mostrem o que os trabalhadores da área do entretenimento podem alcançar quando estão unidos e se organizam para reivindicar remunerações e condições laborais mais justas, a verdade é que, segundo o inquérito da AVTE, a maioria dos tradutores de audiovisuais europeus não é membro de nenhuma associação nacional ou de nenhum sindicato de tradutores de audiovisuais. O isolamento destes profissionais, tão característico da sua profissão (“o bom tradutor é o tradutor invisível”), é provavelmente o principal obstáculo que terão de superar para poderem receber o reconhecimento que merecem e, acima de tudo, para que esse reconhecimento se traduza numa remuneração justa e numa maior protecção social. A luta dos tradutores de audiovisuais deverá passar, então, pela organização dos mesmos em associações e em sindicatos, para que, já não isolados, mas unidos, possam negociar com as empresas, tanto a nível nacional como internacional, e apresentar as suas exigências, que são mais do que legítimas. Infelizmente, já não vamos a tempo de apanhar a onda das greves dos argumentistas e actores nos EUA. Mas está mais do que na altura de criarmos a nossa própria onda.
Crónica de Tiago Sequeira, tradutor de audiovisuais especializado em legendagem e associado da ATAV – Associação Portuguesa de Tradutores de Audiovisuais.