As influências da 1ª temporada de ‘True Detective’

por João Miguel Fernandes,    7 Abril, 2017
As influências da 1ª temporada de ‘True Detective’
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Existem séries com qualidade cinematográfica inigualável, acabando por influenciar diversas criações. Nos últimos anos muitos foram os casos de papéis invertidos, onde as séries passaram para o cinema (por exemplo, o universo Marvel) e o cinema passou para a televisão (Breaking Bad ou True Detective). A lógica de argumento continuo deixou de se aplicar exclusivamente a um filme ou série, mas sim a ambos. Esta fusão de dois universos que até há bem pouco tempo se distanciava claramente veio beneficiar mais as séries do que propriamente o cinema e True Detective é um desses casos.

Recentemente ficámos a saber que está em cima da mesa uma 3ª temporada de True Detective, a HBO contratou o veterano David Milch (Deadwood) para ajudar o criador Nic Pizzolatto a escrever novos episódios.

Bem, mas este artigo é centrado na primeira temporada de True Detective e é disse que te vamos falar agora:

A série de apenas 8 episódios criada em 2014 pelo argumentista Nic Pizzolatto (The Killing) e realizada pelo quase desconhecido Cary Joji Fukunaga (várias curtas metragens, Sin Nombre e Jane Eyre) é hoje em dia considerada uma das melhores de sempre a vários níveis, argumento, realização, personagens e fotografia.

Esta série, centrada em vários casos de homicídio que se interligavam através de metáforas figurativas, criou um novo padrão no que tinha sido feito até à altura. Episódio após episódio o espectador era “convidado” a decifrar um pouco do crime. Ao longo de cada episódio eram deixadas várias pistas que o espectador podia usar para pesquisar e chegar até a uma ideia geral sobre o crime/criminoso da série. Nomes como “Yellow King” ou “Carcosa” remetiam-nos para  literatura e a fantasia negra de autores como Robert W. Chambers, Ambrose Bierce e, naturalmente, H. P. Lovecraft, o pai da fantasia negra. Esta vontade inerente de pesquisa e busca pela verdade tornou-nos os “verdadeiros detectives”, quase que viciados numa busca incessante de mais ligações que nos pudessem fazer chegar ao objectivo final: saber quem era o criminoso.

A produção da série foi um pouco diferente do que a normalidade dos casos. É bastante raro existir apenas um argumentista, quase todas as séries e filmes passam por vários argumentistas até verem a luz do dia. Em True Detective isso não aconteceu e Nic Pizzolatto escreveu tudo sozinho. Além disso também é raro existir apenas um realizador. É cada vez mais comum existir um realizador por vários episódios e não seguir o padrão do cinema, onde excepção feita aos irmãos Cohen e a mais alguns ilustres, a realização nunca é partilhada. Estas diferenças tiveram, obviamente, impacto no resultado final. Uma produção mais pequena tem maior controlo sobre o produto final, podendo concentrar-se na sua ideia original e não ir mudando conforme surjam novas pessoas envolvidas.

True Detective foi também uma rampa de lançamento para Matthew McConaughey. Este era até à data um actor já bastante conhecido, mas o seu papel como Rust Cohle trouxe uma nova perspectiva sobre o artista e uma noção de maior abrangência e sacrifício. Para se preparar para este papel Matthew criou um profundo estudo analítico do seu personagem, com cerca de 450 páginas. A titulo de curiosidade, Matthew interpreta o papel de ateísta, enquanto que Woody Harrelson interpreta o papel de cristão, mas na vida real é exactamente o oposto.  Estas situações desafiam o actores a ir mais longe e quebrarem certas barreiras que por vezes existem durante as produções de séries ou filmes.

A outra grande novidade foi o facto da série ter sido filmada em película, algo bastante raro hoje em dia no cinema complemente digital. Este detalhe faz com que a sua produção tenha características especificas e que a fotografia possa ser tratada de uma determinada forma. Neste caso o uso que prevaleceu foi o das cores pálidas, de forma a criar um ambiente meio enigmático e sombrio que se pedia para o argumento em questão. Esse tom mais negro vem de uma das maiores influências de Nic Pizzolatto, os filósofos Thomas Ligotti e Emil Cioran, assim como naturalmente Nietzsche.

Ao longo de 8 episódios assistimos aos personagens de Rust e Marty a vaguearem por um ambiente soturno, quase labiríntico. Este universo metafórico, simbolizado através de elementos físicos como os ramos de árvores, círculos (que não se lembra de Time is a flat Circle?) e diversos bonecos em representação de cenas e momentos específicos, empresta a True Detective um tom quase catatónico. Os dois personagens chocam constantemente entre os seus problemas, formas de ver a vida e decisões erradas, convergindo de forma quase perfeita quando se trata da parte profissional. Se existe confronto entre a moralidade do homem, a criação e a morte, o sonambulismo social e a ausência de ambição isso é muito graças a Nietzsche. O escritor alemão inunda a série de referências e momentos marcantes, sendo E assim falava Zaratustra a maior referência.

Não só o papel/personagem de Matthew é um desempenho genial do próprio actor, mas também o de Woody Harrelson, que representa em si vários pecados mortais. Aliás, a série cria ao longo dos seus oito episódios diversos confrontos entre luz/escuridão e bem/mal, quase como um pequeno teste subjugado a cada um dos personagens principais. E é aqui que vemos a profundidade e complexidade do personagem de Woody, assente em vícios fáceis e que o contaminam por dentro.

A escolha da narrativa temporal é também interessante e acrescenta maior complexidade à história. Esta criação de duas narrativas paralelas cria em nós a incontrolável sensação de querermos descobrir mais, termos mais atenção a todos os detalhes. O problema é quando Nic Pizzolatto desconstrói essas duas narrativas e as funde numa só. E agora? De que forma é que devemos continuar a perseguir uma resposta? Devemos mudar a nossa abordagem de investigação? Esta escolha técnica não é sem dúvida ordem do acaso, mas sim de um profundo estudo social e comportamental. Ao criarem uma série baseada em cultos reais, influências literárias que estão à disposição de qualquer um, estão também a criar em cada espectador o gosto pela investigação. Ora se após alguns episódios nos habituados a uma determinada composição, é natural que a desconstrução da mesma nos traga o caos, assim como aos próprios personagens.

A nível técnico a série está noutro nível. A demonstrar isso mesmo está o plano sequência do episódio quatro. Quase seis minutos em que o personagem Rust atravessa diversas casas de um bairro prestes a explodir. Este ambiente meio noir leva-nos por vezes até Touch of Evil de Orson Welles, ou The Night Hunter de Charles Laughton. A influência cinematográfica dos planos, fotografia, composição e também personagens é indiscutivelmente norte-americana. Podemos ver alguns traços do cinema clássico de John Ford, assim como do cinema mais moderno representado em Manhunt e Heat, ambos de Michael Mann.

Nic Pizzolatto fez bem o trabalho de casa. Escolheu um tema, estudou os clássicos de literatura e cinema referentes ao universo que criou. A tudo isso juntou dois dos personagens mais sólidos que alguma vez vimos numa série de televisão, deu-lhes alma, identidade e emoção. E por fim pegou num dos realizadores mais promissores da sua geração, deu-lhe liberdade  criativa e escolheu uma equipa técnica com a escola do cinema clássico. Pizzolatto criou assim uma obra de culto.

Influências literárias: The King in Yellow, por Robert W. Chambers, The Complete Short Stories, por Ambrose Bierce (especificamente a história intitulada An Inhabitant of Carcosa), várias obras de H. P. Lovecraft, The Imago Sequence & Other Stories, por Laird Barron,Thus Spake Zarathustra, por Friedrich Nietzsche.

Influências cinematográficas: The Night of The Hunter, de Charles Laughton, Manhunter, de Michael MannTouch of Evil, de Orson Welles, Lost Highway, de David Lynch, The Addiction, de Abel Ferrara, Rope, de Alfred Hitchcock, Hickey & Boggs, de Robert Culp, Blood Simple, de Joel & Ethan Coen, Killer Joe, de William Friedkin e Heat, de Michael Mann.

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