As lições do desastre em Seveso e como este mudou a segurança na indústria química

por José Malta,    4 Julho, 2024
As lições do desastre em Seveso e como este mudou a segurança na indústria química
Fotografia via Wikimedia Commons + Imagem via Google Maps
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No dia 10 de Julho de 1976, um acidente numa fábrica pertencente à indústria química suíça ICMESA em Seveso, no norte de Itália, levou à libertação da dioxina TCDD para a atmosfera. Este composto acabou por se alastrar por toda a região da Lombardia, entre Milão e Como, provocando um impacto ambiental gigantesco. Estima-se que cerca de 3 mil animais morreram e outros 80 mil tiveram de ser abatidos de forma a evitar a entrada da dioxina na cadeira alimentar. Acredita-se também que não tenham existido mortes de seres humanos diretamente associadas ao acidente, mas perto de 200 pessoas sofreram de cloracne e doenças a longo prazo como cancro e transtornos reprodutivos. Apesar de não terem sido declaradas vítimas mortais humanas, a gravidade do acidente levaria a investigações drásticas e, anos mais tarde, à criação de uma directiva europeia de prevenção de acidentes graves, hoje conhecida com o nome da cidade em que este ocorreu.

À época, as normas italianas proibiam as operações de síntese química aos fins-de-semana nas fábricas de todo o país. Uma reacção inacabada foi deixada em repouso durante um fim-de-semana, julgando-se assim que não haveria problema até ao início da semana seguinte. Contudo, sem sistemas de arrefecimento e de controlo de temperatura, uma reacção inesperada ocorrera. Tal conduziria a um aumento de temperatura que terá feito com que a pressão do reactor em questão também aumentasse. Os mecanismos de segurança, como o disco de ruptura na válvula de segurança, deveriam aliviar a pressão, mas acabaram por não conter as substâncias resultantes. Daí, o desastre viria a ocorrer com uma enorme nuvem de produtos químicos, onde se incluía o tal TCDD (2,3,7,8-tetraclorodibenzo-p-dioxina), a ser libertada para a atmosfera. Este composto foi assim resultante de uma reacção descontrolada da síntese do TCP (2,4,5-triclorofenol), usado como herbicida e fertilizante e produzido pela fábrica na época, que é formado em condições de alta temperatura e pressão. Dado o seu impacto, o TCDD viria a ficar conhecido como “a dioxina de Seveso”, pois foi o principal constituinte da nuvem tóxica que se espalhou por uma grande área, apresentando graves riscos à saúde da população atingida na Lombardia.

Desastre de Seveso, em 1976 / Fotografia via Wikimedia Commons

O facto de a fábrica não ter qualquer norma ou protocolo de segurança adequado, fez com que este acidente culminasse, fazendo como que o sector da indústria química tivesse de tomar as devidas elações sobre como se deveriam prevenir os acidentes. A indústria não poderia de forma alguma parar e era cada vez mais necessária a um mundo em constante avanço. A resposta lenta dos responsáveis pela fábrica e das autoridades foi também determinante para que o acidente resultasse numa tempestade perfeita. Apesar das consequências provocadas por este acidente, Seveso já se encontra livre do perigo, bem como toda a região afectada. No entanto, este acidente foi considerado como um dos mais nocivos do ponto de vista ambiental alguma vez testemunhado, o que levou a que diversas medidas tivessem de ser aplicadas nos anos seguintes.

O desastre de Seveso fez com que a União Europeia (quando ainda era Comunidade Económica Europeia) implementasse a 1 de Junho de 1982 a chamada Directiva Seveso 96/82/CE (Directiva Seveso I). Esta é uma directiva que impõe os Estados-Membros da União Europeia identificarem as zonas industriais, provendo a prevenção e controlo de acidentes graves que envolvem substâncias perigosas e a limitação das suas consequências para a saúde humana e o meio ambiente. Tem sido alvo de revisões e melhorias, com o passar dos tempos, e foi modificada em 1996, com a directiva 96/82/EC (Directiva Seveso II), que incluiu novas substâncias periogosas e o planeamento de emergência e informação pública. Em 2012, a directiva 2012/18/UE foi publicada no Jornal Oficial da União Europeia e posta em vigor em 2015 (Directiva Seveso III), actualizando as directivas anteriores, alinhando com as alterações na legislação da União Europeia em matéria de produtos químicos (Regulamento CRE). São mais de 12 mil as companhias abrangidas por esta directiva e certamente continuará em constantes revisões, acompanhando os tempos, de forma a salvaguardar a segurança das pessoas e do meio ambiente.

Zona de Seveso, em 2024 / Imagem via Google Maps

Seveso foi uma lição que nos levou a olhar de um outro modo para a indústria química e como esta pode ter consequências caso não sejamos responsáveis. No entanto, e com o passar dos anos, uma onda de que “tudo o que é químico é mau” veio a alastrar quando, por exemplo, a própria água (H2O), que constitui dois terços do nosso corpo é também um químico. Existe a velha paródia de fazer a piada sobre o monóxido de di-hidrogénio, um outro nome químico dado à água e que passa ao lado das pessoas com menor literacia científica, e dos perigos deste terrível composto como a corrosão, a causa de afogamento e a sua utilidade com principal fonte de refrigeração das centrais nucleares. Não devemos olhar de forma alguma para tudo o que é “químico” como mau e nocivo quando tudo é Química. No fundo, até certo ponto, toda e qualquer substância pode ser tóxica. A água, que é essencial à vida e ao nosso organismo possui inúmeras aplicações e também tem uma dose letal. Beber cerca de 6 litros em poucas horas pode ser fatal para o nosso organismo. Nada que se compare ao TCDD que provocou efeitos à mínima exposição, sendo que a ingestão de poucos miligramas pode levar à morte.

Ainda há muito para melhorar e as lições que aprendemos como Seveso devem ser preservadas. Sem indústria química a nossa subsistência nos tempos que correm não seria a mesma. É através dela que conseguimos os produtos alimentares, os fármacos, os semicondutores indispensáveis aos nossos computadores e telemóveis, num mundo cada vez mais desafiante. Ainda existem os problemas das emissões gases poluentes, dos solventes orgânicos voláteis e de outros componentes que devem ser reduzidos de forma a preservar o ambiente e a saúde de todos. Têm sido encontradas alternativas que têm vindo a ser gradualmente implementadas. Umas têm resultado melhor do que outras e ainda existe um longo caminho a percorrer. Contudo, é importante realçar que Seveso foi uma lição que mudou por completo a nossa maneira de olhar para o futuro da Química e da nossa sociedade, com a consciência de que só com as devidas precauções, as boas decisões tomadas e a compreensão do mundo que nos rodeia, é que continuaremos no caminho certo.

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