As nossas 20 personagens favoritas de séries
Uma boa parte do nosso período de quarentena foi passada a ver (ou rever) algumas das grandes séries com que temos sido agraciados nos últimos anos. Sejam elas dramáticas ou de comédia, baseadas em factos reais ou ficcionadas, de live action ou até de animação, nelas encontramos personagens que são reflexos da humanidade e que nos ensinam mais do que aquilo que esperaríamos quando clicamos no play. Em jeito de homenagem, decidimos compilar 20 das personagens de séries que mais nos marcaram, por ordem alfabética.
April Ludgate (Parks and Recreation), interpretada por Aubrey Plaza
Reza a lenda que a personagem de April foi escrita precisamente para Aubrey Plaza, depois de a diretora de elenco da série a ter conhecido e a ter descrito a Michael Schur, criador da série, como “a rapariga mais estranha que já conheci na vida. Tens de a incluir na série”. A sua personagem é aquela que leva o formato de mockumentary mais a sério, dirigindo olhares e non-sequiturs hilariantes para a câmara. A estranheza ousada de April pode por vezes ser desconcertante, mas a evolução da personagem ao longo das sete temporadas acomoda os seus tiques de forma enternecedora. April passa da adolescente estagiária desinteressada e sem expressão a uma jovem adulta bem integrada e… bem, ainda sem expressão, mas mais madura e parte de uma das relações românticas mais sadias das sitcoms, com o amoroso pateta Andy (Chris Pratt). — Bernardo Crastes
Arthur Shelby (Peaky Blinders), interpretado por Paul Anderson
O fumo adensava-se na atmosfera de Birmingham no início da segunda década do século XX, o trote dos cavalos preenchia a cidade e o seu monopólio era disputado por vários gangues. Arthur Shelby constitui a forma mais hiperbólica da ordem dada pelos Peaky Blinders: o caráter imponderado, impulsivo e verdadeiramente extemporâneo é a tela desenhada com maior minúcia no que diz respeito ao stress pós-traumático derivado às experiências na Primeira Grande Guerra e às consequências vindouras desse facto. Um dos líderes da organização abraçou a debilidade mental e, sobre ele, adejam a prática de suicídio — visível desde o início — e o desejo de tingir as mãos de sangue aquando de um desentendimento (fortuito ou não). Rege-se pela justiça e leva-a até às consequências mais nefastas, sem medo do que lhe está reservado. O seu desequilíbrio é despejado nas têmporas ora de Linda (parte menos significativa), ora de Thomas Shelby (Cilian Murphy). O álcool corre-lhe nas veias. — Romão Rodrigues
Asuka Langley Soryu (Neon Genesis Evangelion), interpretada por Yūko Miyamura
Asuka é uma das personagens principais daquele que é considerado por muitos o melhor anime de sempre. A sua personalidade contrasta frequentemente entre confiança extrema e falta dela — no fundo uma característica de quem tem falta de confiança, mas está numa posição de destaque onde tem que demonstrar que é exactamente o oposto. Asuka simboliza a pressão a que os jovens são sujeitos, o facto de termos que superar expectativas e por vezes ir contra aquilo que verdadeiramente queremos apenas por pressão externa. Asuka contrasta entre força e fraqueza e demonstra constantemente o que significa “ser melhor”, o que é “ser humano”, de uma forma muito mais complexa que muitos personagens masculinos (que são o género normalmente escolhido para explorar estas questões). Asuka mostra-nos o que a confiança extrema e até uma certa arrogância escondem, transformando-se ao longo da série numa personagem com extrema falta de confiança e sinais claros de depressão extrema. Asuka é, no fundo, uma chamada de atenção para vários problemas sociais. — João Miguel Fernandes
Carrie Mathison (Segurança Nacional), interpretada por Claire Danes
A impossivelmente focada agente da CIA Carrie Mathison tem de ter um lugar nesta lista, pela representação angustiante do transtorno bipolar dado por Claire Danes. A sua obsessão pelo prisioneiro de guerra Nicholas Brody (Damian Lewis) é o mote para as perfeitas duas primeiras temporadas, em que Carrie representa não só a humanidade, mas também a ambiguidade da luta contra o terrorismo num mundo pós 11 de Setembro, 10 anos depois do acontecimento que definiu a história dos EUA. Através dos conflitos internos e pobres decisões da personagem, a série aponta uma luz mais escrutinadora sobre as ações da CIA, encapsulando a atitude menos orgulhosa e americocêntrica que fomos vendo ao longo da década de 2010, quando comparada com a década anterior, em que Jack Bauer era o standard da redutora e xenófoba luta do “bem” (americanos) contra o “mal” (muçulmanos, russos, chineses…). Com Carrie, a luta mais premente é aquela feita contra os seus próprios demónios internos. — Bernardo Crastes
Claire Underwood (House of Cards), interpretada por Robin Wright
Se Frank Underwood lidera a caminhada desde um mero cargo político na Carolina do Sul até à Presidência dos Estados Unidos da América, a mesma foi, na verdade, orquestrada pela sua esposa, Claire. Foi ela quem deslindou e executou um plano recheado de contingências, superando-as na sombra de um casamento de conveniência, orientado pelos desejos e pelos rumos do poder. Foi assim que, queimando etapas ao lado do seu marido, derrubou aqueles considerados desnecessários com uma frieza e um cinismo que fazem do seu olhar dissonante do seu sorriso. Da Carolina do Sul até às maiores relações internacionais e que, talvez por justiça poética, lhe deram a merecida presidência, após a queda do seu marido, Frank. Na vice-presidência, a orquestra do poder atuava com a sua maestria psicológica. House of Cards é, para lá do trono que Frank Underwood ambiciona ocupar e centralizar, a atuação sinuosamente sublime de Claire Underwood até a um poder que, na verdade, sempre foi dela. — Lucas Brandão
Dale Cooper (Twin Peaks), interpretado por Kyle MacLachlan
A primeira série que vi e a primeira personagem pela qual senti admiração pura. Conferi notoriedade ao FBI quando contemplei o agente especial a fincar os pés no solo de Twin Peaks, pejado de métodos e estratégias provenientes de um sonho onde residia um povo de origem africana (superstição sobreposta à convencionalidade), prática aliada a uma boa dose de café, tarte de cereja e a um jeito premonitório incomum, motivado principalmente por sonhos — regrada por Diane, o eterno gravador mistério — e a uma mágoa aguda que incide sobre o coração e que se concerne às relações que se avizinham. Dale Cooper é o tipo de pessoa imbuída, por completo, no seu trabalho e incapaz de segregá-lo da atividade pessoal. É a metáfora perfeita de uma tentativa exaustiva da instrumentalização de qualquer sentimento e a aura de um quase estoicismo que busca de modo incessante, lúcido e premeditado; representa o combate acérrimo ao espírito de Bob e acaba traído pelo doppelgänger que lhe corresponde. Audrey Horne é uma armadilha de desarme espinhosa montada pela vida e pelo destino. Annie Blackburn é o primeiro passo para a tragédia de espírito… — Romão Rodrigues
Finn Mertens (Adventure Time), interpretado por Jeremy Shada
Personagem completo com grande complexidade emocional que passa por todas as fases da vida de uma criança, jovem e quase adulto: relação com o irmão e amigos, primeira paixão, outras paixões, o facto de se tornar um herói e o peso que isso acarreta, a relação conflituosa com o pai que ele idolatra, mas que só se serve dele para seu próprio benefício e a relação meio trágica com a mãe. Ao longo das 10 temporadas, assistimos a uma grande evolução do personagem, ao contrário da maioria dos desenhos animados americanos. Adventure Time arrisca e guia o espectador não só por um mundo de fantasia surrealista, mas também por um processo emocional do personagem principal que se inicia desde criança até “adulto”. Finn enfrenta os problemas comuns que a maioria de nós enfrentamos e ensina-nos a lidar com os mesmos. — João Miguel Fernandes
Francis Crozier (The Terror), interpretado por Jared Harris
Baseada em eventos reais, The Terror narra a expedição britânica levada a cabo por John Franklin na década de 1840, com o intuito de encontrar a Passagem Noroeste. A jornada acompanha os dois navios, Erubus e Terror, que acabaram por desaparecer, juntamente com a sua tripulação. Nos limites do mundo e da sobrevivência, o comportamento humano tende a aproximar-se perigosamente da bestialidade, afastando-se, por outro lado, das normas, dos princípios, da moral e da ética, condições impostas pela razão que comanda a raça humana. Francis Crozier é o personagem que se destaca de entre um elenco de luxo, cujos personagens consagram a quebra do espírito e dão voz ao desespero de quem sabe ter encontrado o fim. Francis, que se vê obrigado a tomar o cargo de Comandante, ganha o respeito dos seus homens, assim como dos espectadores, ao nunca abandonar a sua humanidade ou esquecer os valores que sempre impôs a si próprio, caminhando com coragem e dignidade durante o calvário com que se debate por entre a paisagem gelada. O sofrimento que suporta ao assistir à queda dos seus companheiros levam-no a abdicar de quem foi, numa última viagem pela expiação das suas próprias falhas. Um teste à consciência de cada um, Francis obriga-nos, inevitavelmente, a refletir sobre a nossa própria conduta perante o inimaginável. — Inês Bom
Gregory House (House), interpretado por Hugh Laurie
Gregory House é uma das personagens mais ilustres das séries de ficção. House executa diagnósticos médicos como ninguém, graças ao seu método indutivo, demonstrando uma enorme capacidade de argumentação e minúcia, estando atento aos mais pequenos detalhes. Apresentando uma postura fria e sarcástica, e um ar algo desleixado, vemo-lo durante os episódios a coxear pelos corredores do hospital acompanhado pela sua bengala e por um frasco de Vicodin, medicamento que alivia as dores na sua perna direita e pelo qual mantêm um vício constante que lhe chega a causar problemas. House não se trata de um médico comum que revela uma preocupação pelos pacientes e por aqueles com quem colabora. O próprio apenas tem interesse em resolver os mistérios, sendo dotado de uma série de conhecimentos que vão muito para além da medicina, evitando o contacto com os doentes e tratando-os de forma pouco simpática. Existem vários confrontos com os seus colegas e com a sua chefe Lisa Cuddy, com quem tem uma relação amorosa mais intensa, terminando de uma maneira trágica. A par deste incidente, o acidente num autocarro e a passagem pelo hospital psiquiátrico devido às alucinações provocadas pelo Vicodin são outras duas passagens que deixaram uma marca importante na série e também na vida deste médico. Apesar de cada episódio estar fortemente marcado pelo o humor negro e pela sua façanha mais obscura, é com o lado mais humano de House que a série termina. — José Malta
Jules Vaughn (Euphoria), interpretada por Hunter Schafer
Jules tem, em certa parte, vários pontos em comum com a actriz que a interpreta. Sendo uma personagem transexual, seria natural que fosse usada como estereótipo e símbolo, algo que não acontece. Jules é personificada como qualquer outra personagem, sendo um símbolo de normalidade. Esta é uma das raras vezes que uma personagem transexual, homossexual ou pertencente a qualquer outra minoria não é personificada com um estereótipo de bandeira da mesma. Jules incute no espectador aquilo que deveria ser uma verdade comum a toda a gente: qualquer que seja a nossa sexualidade, género ou seja o que for, tem que ser tratado com normalidade porque é tão natural como tudo o resto. A naturalidade da sua interpretação reflecte-se na complexidade emocional da mesma, criando aqui uma personagem densa e sem dúvida uma das mais interessantes dos últimos anos em TV. — João Miguel Fernandes
Lucille Bluth (Arrested Development), interpretada por Jessica Walter
Diz muito sobre Arrested Development que eu tenha considerado quase todos os elementos da rica e disfuncional família Bluth para este ranking. Seja o sempre bombástico Gob (Will Arnett), o cabeça-de-vento Buster (Tony Hale) ou o centro que equilibra a família com as suas reacções perfeitas, Michael (Jason Bateman), a série é pejada de personagens hilariantes. No entanto, é a matriarca Lucille que consegue fazer mais com o seu tempo de antena, com uma presença instantaneamente sentida, mesmo quando não está a proferir uma das suas muitas frases eternamente citáveis (“É uma banana, Michael. Quando poderá custar? 10 dólares?”), a piscar o olho de forma desconfortável ou a beber vodka com uma torrada às 8 da manhã. Lucille poderia ser apenas a figura maternal que ninguém quer ter e que odiamos amar, mas o seu peso nos assuntos da família vai sendo revelada ao longo da série, tornando-a absolutamente essencial ao rumo da história e a este ranking. — Bernardo Crastes
Michael Scott (The Office), interpretado por Steve Carell
Steve Carell, apesar de tantos papéis humorísticos feitos, acaba por se perpetuar com a célebre personagem que interpreta em The Office. Scott é o patrão de uma empresa de fabrico e comercialização de papel, mas não é um patrão qualquer: apesar da tentativa dos seus colaboradores fazerem algo sério, que é o seu trabalho, este assume uma conduta completamente non-sense, que é de tal forma inusitada e até ridícula que se torna engraçada. Consigo, leva as restantes personagens por arrasto e fá-las ascender ao seu nível, libertando-as de uma possível apatia que a história poderia suster. É, toda ela, um misto de confusão e de peripécias que acabam por ser devidamente direcionadas, já que as personagens vão evoluindo e descobrindo-se. É isso mesmo que acontece a Michael Scott, que, apesar de todas as suas parvoíces e de uma gestão que quase se pode considerar como danosa, não deixa de, ele próprio, crescer e de conseguir até conquistar a confiança e a estima dos seus trabalhadores. Pelo meio de tanta palhaçada, há uma bonita história a ser contada e Michael Scott é quem a conta da forma mais carismática e rasgada. Não é por acaso que tantos risos possam conduzir a lágrimas pelo meio. — Lucas Brandão
Pablo Escobar (Narcos), interpretado por Wagner Moura
Narcos traz Wagner Moura a representar Pablo Escobar, o conhecido barão da droga colombiano. Moura teve de ir para a faculdade aprender espanhol, para além de ter ganho algum peso e de ter deixado crescer o bigode. Apesar da representação física não ser perfeita e totalmente idêntica, a interpretação faz esquecer essa falta de semelhanças fisionómicas. É uma interpretação que, para além de dominar todo o vernáculo espanhol típico daquele Medellín aprofundado pelo narcotráfico, reveste-se de uma intensidade e de uma ferocidade que transmite um caráter frio, calculista, embora íntimo dos seus e das suas origens. É uma caraterização tremenda, que, por si só, faz com que a série mereça ser vista. Toda a violência em torno da personagem, para além da sua ambição e do seu rumo, é perfeitamente expressada na presença robusta e intensíssima que Wagner Moura assegura. Escobar não é só um mero homem, é quase um mito personificado, cujo mero vulto assusta, mesmo perante a maior adversidade e a maior necessidade de fuga. A sua invencibilidade é materializada num “malparido, hijo de puta” que tem mil vidas e que até na sua queda não deixa de intimidar e de perpetuar uma quase-divindade. É esse o efeito que Wagner Moura, com a sua interpretação completamente transcendental, consegue incutir numa personagem bem mais terrena e ardilosa. — Lucas Brandão
Rustin “Rust” Cohle (True Detective), interpretado por Matthew McConaughey
A personagem de Matthew McConaughey vive bastante de um argumento apurado e realização/montagem do melhor que já se viu em TV. Rust cresce a cada episódio graças aos seus monólogos e diálogos filosóficos, algo pouco natural, mas impressionante do ponto de vista de qualidade. A sua personagem vive em constante conflito consigo mesmo, como o clássico anti-herói, com mais pecados do que coisas boas, mas com vontade de viver, mesmo que seja no meio da escuridão. É um personagem que nos ensina a viver em momentos complicados, embora quase sempre mergulhado numa escuridão tal que se torna difícil ver a luz. A interpretação de McConaughey e o argumento tornam-no num dos personagens mais complexos e interessantes da TV. Tal como outros dentro do género, Cohle vive agarrado aos seus medos e dependências, e é isso que alimenta a sua vida, a profissão, o crime e a violência. — João Miguel Fernandes
Selina Meyer (Veep), interpretada por Julia Louis-Dreyfus
É preciso ter uma boa dose de confiança para representar uma versão bastante realista de uma vice-presidente dos EUA, algo que Julia Louis-Dreyfus demonstra ter, enquanto Selina Meyer navega pelos meandros de lobbies, acordos duvidosos, relações internacionais e campanhas presidenciais, retratados de forma exagerada (ou será que não?) para efeitos de sátira política. Isto é algo corroborado pelo chorrilho de Emmys atribuídos a Julia, mas teríamos dificuldades em apontar uma falha à actriz nas suas hilariantes reacções, venenosos insultos e impressionantes confrontos políticos, mesmo quando não conseguiu evitar esboçar um sorriso ao proferir a incontornável frase “isso é como usar um croissant como um caralho de um dildo”. A adaptação da personagem às suas diferentes situações políticas é um prazer de se ver e confere dinamismo à série, que poderia ter sobrevivido apenas pela mordacidade do argumento e piadas perfeitamente temporizadas, mas acabou por criar uma vice-presidente como a que os EUA nunca tiveram, tanto que a actriz chegou a ser abordada para concorrer a presidente. Imaginem só. — Bernardo Crastes
Serena Joy Waterford (The Handmaid’s Tale), interpretada por Yvonne Strahovski
Nesta distopia criada por Margaret Atwood, Gilead é palco de um retrocesso ideológico que culminou numa total subversão dos valores humanos, sendo o seu apogeu a redução da Mulher a uma única finalidade para com a sociedade: a procriação. Neste mundo de obediência e servidão, as atrocidades são cometidas sob a fachada de uma ordem necessária à sobrevivência da espécie humana e os seus líderes comandam com base em ideais dissimulados que apenas beneficiam uma fração. Serena Waterford é a mulher de um consagrado Capitão, podendo, à partida, configurar-se a sua posição como privilegiada. Em tempos uma advogada de sucesso, Serena abdicou de tudo em prol de um ideal que se virou contra si, despindo-a de tudo o que a tornasse mais do que um mero adorno. Vazia por dentro, agarra-se vigorosamente a um único objectivo: ser mãe. É a própria maternidade que desenterra a sua humanidade das profundezas de um corpo outrora oco. As contradições de um mundo que ajudou a criar tornam-se claras, apontando na direção de uma filha mulher que terá de enfrentar uma sociedade que a silencia até à morte. Serena incorpora todas as complexidades próprias do ser humano. As batalhas que trava consigo mesma, as lutas de consciência e os sacrifícios a que se impõe, expressam o que de mais belo e mais medonho podemos esperar encontrar em nós próprios. — Inês Bom
Tony Johnson (After Life), interpretado por Ricky Gervais
A maior das tempestades povoa — regra geral — o íntimo do nosso subconsciente. Os Heróis do Mar cantaram que “dos fracos não reza a história”, mas a trama desta série volteia uma caracterização de alguém emocionalmente dilacerado e vítima de uma fraqueza que assume contornos perpétuos: a perda de alguém que julga ser a mulher da sua vida. O protagonista refugia-se nas ferroadas humorísticas — consideradas, por alguns, trocistas —, na ironia desbravada e na labuta diária numa redação de um jornal local, que o incita à procura constante de situações bizarras e atípicas. Apesar disso, o desapego irresponsável pela dicotomia sociedade/mundo foi provocado pelo amor genuíno e enraizou-se de forma profunda. A masmorra do sofrimento foi abalroada por duas pessoas insólitas, uma desprezível aos olhos da grande maioria (prostituta) e outra infetada pelo mesmo “vírus”. Observar Tony, no decurso da série, é realizar a desconstrução sentimental da personagem no expoente da sagacidade e voltar à sua construção com o fantasma da irresolução do seu passado a pairar. — Romão Rodrigues
Tony Soprano (Os Sopranos), interpretado por James Gandolfini
O grande líder da família Soprano faz jus a uma herança familiar que comanda uma teia de relações criminosas. A organização mafiosa que Soprano comanda é feita à base de uma incondicional defesa da sua família, desde os diretos até aos seus companheiros de causa na máfia. Tony Soprano, porém, é muito mais do que um líder. Apesar de ir acumulando poder à medida que a história se desenvolve — em muito devido ao derramamento de sangue daqueles que obstavam ao seu caminho — é, também ele, um caminho de fragilidade e de vulnerabilidade. O grande líder da série é, assim, desconstruído, revelando as suas lacunas, as suas frustrações e as suas vicissitudes. Todas elas se tornam cruciais para a ascensão meteórica, mas também para que todo o seu poder seja posto em causa. A sua própria família acaba por ser vítima deste percurso de Tony Soprano, que, embora procure proteger e estimar a sua família, acaba por descontrolar-se mental e fisicamente. Toda a série rodeia o desenvolvimento da personagem e fá-lo com tamanho engenho que imortaliza os silêncios e as entrelinhas como um diálogo a não deixar passar na vida e na obra de Tony Soprano. — Lucas Brandão
Valery Legasov (Chernobyl), interpretado por Jared Harris
Valery Legasov, professor e cientista responsável pela investigação em torno do desastre de Chernobyl em 1986, trata-se de uma personagem real. Apesar de esta ter sido uma mini-série com apenas cinco episódios, Chernobyl foi uma das produções mais bem-sucedidas de sempre e seria impossível não incluir Valery como uma das personagens que mais marcou a série. Após o desastre nuclear em Chernobyl, na actual Ucrânia, o professor Valery Legasov é nomeado como principal líder das investigações, durante as quais existe uma relação tensa entre ele e o alto comissário do governo Boris Shcherbina, marcada pelo modo como Valery, através das suas analogias e dos seus conhecimentos profundos, convence Boris Shcherbina e os menos crentes de que esta seria uma situação de emergência nunca antes testemunhada. Depois de ter desvendado o que se passou realmente em Chernobyl e de ter prestado declarações perante uma audição em tribunal, acaba por contradizer o que disse ao mundo, alegando questões políticas dentro da própria União Soviética. Embora tenha permanecido em liberdade, passaria o resto da sua vida sob vigilância apertada e com mazelas físicas devido à radiação a que foi exposto, como tantos outros que deram o seu contributo ao longo da investigação. Nos seus últimos dias de vida, gravou as suas memórias em cassetes de audio, onde explica tudo aquilo que se passou à volta do caso de Chernobyl, com informação nunca antes revelada. Suicidar-se-ia um dia depois de se assinalarem dois anos do acidente, tendo tido um final ingrato para aquele que foi o grande herói desta história. — José Malta
Walter White (Breaking Bad), interpretado por Bryan Cranston
Na série, a missiva de que “o cancro altera a forma de pensar e agir” é extremada. O primeiro contacto com a morte impingiu Walter White a arrumar, gaveta a gaveta, a infelicidade e o conformismo característico da sua vida até então. A iniciação da produção de metanfetaminas é, para além de um resguardo financeiro substancial, uma estratégia assente na própria vitalidade, com o desejo ardente de coliderança, partilhada com Jesse Pinkman (Aaron Paul). A partir daqui, o perigo confinado ao mundo do narcotráfico funde-se com a sobrevivência. Saul Goodman (Bob Odenkirk) é escolhido como entidade protetora, que resvala e balança entre o judicial e o não judicial e a índole plástica, dissimulada e vincadamente estratégica. Gustavo Fring (Giancarlo Esposito) é contraplacada e enfrentada de olhos nos olhos. Um motivo diferencia o querer ser e o querer ter do ser e do ter propriamente ditos. No fundo, é a transição do ato de ouvir o bater da porta para o início do movimento com os nós dos dedos. Walter White is who knocks the door! — Romão Rodrigues