‘Ashtar Teran III: Luz’, de Sasha Grey As Wife: relatos de uma caminhada panteísta
Sasha Grey As Wife é o ato a solo do brasileiro Júlio Victor. Desde black metal até emocore e rock psicadélico, o artista adiciona uma miríade de géneros ao seu rock alternativo com base no post-rock e no spoken word. Ashtar Teran III: Luz é o último álbum de uma trilogia começada em 2017, sucedendo a Ashtar Teran I: Terra e a Ashtar Teran II: Umbral.
Em Terra, há um álbum palpável, porém, de uma letra expansiva, de ideias largas que erigem um contraste entre o local e o galáctico, o específico e o cósmico, para criar um insuflar do espaço musical. Vozes variadas transmitem um sentido coletivo que representa os emissores da mensagem: nós. A percussão minimalista nem sempre perfeita, as claras dificuldades na interpretação vocal e as vozes secundárias emperradas nas mudanças de ritmo são aspetos menos conseguidos. A segunda parte, Umbral, mais violenta, aborda o mal, continua um ataque à religião organizada e reflete sobre a era digital. A percussão melhora, as aberturas impressionam, mas há mais desleixos: a voz permanece problemática, as transições de influência progressiva têm dificuldades, o abuso dos segmentos falados homogeneíza a experiência e a ordenação da lista não convence, juntando faixas com padrões semelhantes que criam picos de estridência.
A última incursão na narrativa de Ashtar Teran é sobretudo contemplativa: olha para o metafísico e para as extremidades da compreensão humana. O amor, a introspeção e o divino, temas que levam até à tal luz que é a derradeira conclusão da saga, numa faixa com mais de meia hora com esse mesmo título — aliás, em toda a trilogia, a faixa homónima é a maior e vem no fim.
Luz abate no uso da voz no estilo spoken word (exceção na última música) e é mais pleno, livre de encruzilhadas — as melodias são mais claras e assentam melhor no estilo do artista. Ao contrário dos anteriores, mantém a qualidade das aberturas com mais consistência, variando os tons naturalmente, o que acrescenta uma fluidez que fazia muita falta. As samples típicas do post-rock são um mimo e estão melhores do que nunca, usadas no excesso habitual.
A lista começa com “Amor”, faixa calma que se constrói devagar num ADN post-rock puro; as ideias cruas não são originais, mas a exposição é, e o instrumental convence. No final, bem edificado, escuta-se “amo-te” em várias línguas, interpretado pelas vozes do Google Tradutor, com o suave “je t’aime” francês e o “te iubesc” romeno de áudio reles, vozes essas que continuam até ao final mole. Segue-se “Design Design”, onde os vocais emo típicos do artista regressam por cima de um post-rock mais sintetizado e com influências sensíveis do rock japonês.
“Kalachakra Tantra” é instrumental, pauta a lista convenientemente com a sua percussão depois das samples em “Amor” e dos vocais longínquos em “Design Design”. Deixa-se morrer no fim para transitar para “Shambala”: esta, com o terreno desmatado pela terceira música, fazia antever uma chegada angelical, mas somos recebidos por uma montanha de palavras por cima dos seus ritmos bicudos; todavia, o conto termina cedo e pode-se respirar a percussão fechada e o caos estéreo das guitarras. O tom de rock clássico aspira depois a poeira inicial e a voz de Pai Guga diversifica a composição, evitando o enfado. Antes da lírica mais límpida do final, ouve-se a entropia do início num regresso sinfónico que nos retira a noção de tempo — uma eternidade há de ter passado até se ouvirem os roncos finais. “Melkitsedeq”, sonoramente familiar e com vocalizações que remetem para Umbral, ainda que o instrumental contemplativo permita relaxar. “Sasha Grey” é voz sobre guitarra, numa canção simples com pinceladas de The XX. Eleva-se em emoções facilmente. A interpretação vocal continua a ser o ponto fraco do artista.
E chegamos a “Luz”; a música final com uns imponentes 35:39 de duração. Começa com uma sample ecoada e logo destruída pelo do som da bateria, naquele que é o momento mais impactante do disco. Regressa o sampling e mais uma quebra do mesmo com percussão refrescante. Perde-se na estridência pelos onze minutos até entrar a terceira mensagem e, pouco depois, repete-se o segmento percussivo inicial — é bem-vindo, afinal, há que coser uma peça desta dimensão, algo que sem um motivo (motif) seria complicado. “Luz” é congruente e sabe espalhar-se pela sua duração, ainda que tenha dificuldade em oferecer uma profundidade que justifique os quinze minutos da segunda parte, a quarta mensagem, que, já pela voz do artista, conclui meditativamente. Júlio entrega-se à ideia do divino: “Deus é um ambiente onde tudo pode existir”, ouvimos. A Igreja foi destruída noutros capítulos, mas a luz parece permanecer nas ideias panteístas do artista, absorto na emoção de algo maior e empenhado em ligar o ambiente universal à ideia de Deus, por cima da religião.
Com samples interessantes em primeiro plano num estatuto post-rock, Ashtar Teran III: Luz usa sons mais psicadélicos, sintetizadores e melodias mais básicas e efémeras para se distanciar do típico do género, onde as samples são colocadas por baixo. É verdade que a letra fraqueja, perde-se no seu texto com muita facilidade, e as frases repetem-se; há ideias recicladas e sobreexpostas dos outros atos, mas o brasileiro superou-se e abriu espaço para mais e melhor. O artista começa a perceber que nem sempre precisa de pregar em todas as faixas, pode comunicar melhor com a sua música. É sob a luz que Sasha Grey As Wife está mais à vontade.