“Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles: a distopia brasileira como um western do Sertão
Há bacamartes, “soldados da fortuna” e drones em “Bacurau”. E até a improvável combinação de Sónia Braga e Udo Kier ao som dos Spandau Ballet, na mistura muito calórica e explosiva cozinhada por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. E há também Bárbara Colen, a Clara jovem de “Aquarius”. Só um pormenor, como não houve “Bacurau” para os distribuidores portugueses, a única solução para ver o filme em sala Portugal será no Cinema Trindade, no Porto.
Explosiva é a palavra certa para descrever este futuro distópico em que uma cidadezinha do interior é cercada por mercenários americanos. Ou seja, a descoberta dos problemas locais e a forma como a política é feita onde não a vemos. E, sobretudo, como a realidade com aquilo que tem de pior, ou seja, o uso de armas banalizou-se no ecrã de televisão em jogos de violência niilista.
Por certo, muitas pessoas esperavam o regresso a Cannes do brasileiro Kleber Mendonça Filho para encontrar uma continuação de “Aquarius” ou “O Som ao Redor”. Isso talvez aconteça, embora o cineasta tenha decidido abandonar a cidade para se refugiar ao sertão e retratar o que por vezes nos escapa, ou seja, como é feita a política nas regiões do interior. Isto a partir de um guião iniciado há precisamente dez anos, antes ainda de O Som ao Redor. Apesar dos rumores de que seria um filme algo particular, talvez algo desfasado de um ponto de vista internacional, acabámos por confirmar precisamente o contrário. Para além de Sónia Braga, Barbara Colen e, claro, Udo Kier, a par de alguns atores americanos menos menos conhecidos, destaca-se também a atriz trans Silvero Pereira.
É bom perceber como nesta narrativa aliada ao realismo dos pequenos lugares começa a instalar-se uma estranheza que ultrapassa a realidade. É a luta pela água potável como se de uma riqueza profunda se tratasse, é a proximidade com uma política populista, que prefere despejar uma tonelada de livros velhos como se de uma importante dádiva cultural se tratasse (numa recordação próxima do III Reich), e sobretudo como os pequenos gestos podem alterar aquilo que é verdade e gerar o consenso.
Paralelamente, observamos a infiltração americana camuflada, com a missão de eliminar os agentes ‘perigosos’ de “Bacurau”, de uma forma que mais parece um jogo. É por aqui que começamos a sentir a proximidade a um “Mad Max” do Sertão, mas também combinada pela violência gratuita de “Hunger Games”. Vemos mesmo um casal de “operacionais” que celebra com um orgasmo sexual a eliminação de um casal de idosos. Mas é sobretudo na forma como Kleber e Dornelles cozinham tudo isso que nos atrevemos a dizer que “Bacurau” é uma pequena preciosidade.
Tudo isto pode parecer ir longe demais – porventura até estará – ainda que “Bacurau” nunca nos faça perder uma dimensão de realidade. Foi por aí que quisemos questionar o realizador na conferência de imprensa em Cannes:
“Não sei exatamente se este filme é uma projeção científica de onde vão as coisas”, respondeu-nos Kleber, acrescentando que a atualidade acaba por rivalizar com a ficção. “Algo que nem é limitado ao Brasil. Basta ver o que sucede hoje no mundo. Parece-me algo que poderia ver num filme dos anos 80, dos 70 ou mesmo em novelas de ficção científica dos anos 60. Há elementos que acabaram por ser incorporados no processo de escrita do guião e que nos surpreenderam durante o desenvolvimento. Era como se a realidade estivesse a acompanhar o guião. E quando isso aconteceu tornou-se algo inacreditável. Em muitos aspetos do dia-a-dia, o Brasil parece uma distopia.”
Crítica de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt.