BadBadNotGood no EDP Cool Jazz: improvisação quente para noites frias
Para a celebração dos seus 15 anos de existência, o EDP Cool Jazz apostou grandemente no cartaz. Prova disso é a selecção dos canadianos BadBadNotGood, um nome fora da caixa para este festival. O enrodilhado de jazz com hip-hop que estes jovens produzem era algo que não esperávamos encontrar neste contexto, mas da surpresa nasceu o entusiasmo que nos levou até Cascais.
Chegados ao Parque Marechal Carmona, ficamos impressionados pela beleza do espaço e pela forma como o festival se moldou ao mesmo, com belíssimos apontamentos de luzes e detalhes decorativos deliciosos. No entanto, quando alcançamos a zona de concertos, ficamos amargamente surpresos pela plateia VIP. Uma série de centenas de cadeiras, ocupando uma enorme área em frente ao palco, deixando os possuidores de bilhetes normais resignados a ocupar as laterais dessa plateia ou a colocar-se a uma ainda maior distância do palco, de forma a poder vê-lo de frente. Como veremos em breve, a escolha de manter esta plateia não foi a mais sensata, tendo em conta a natureza do concerto dos cabeças-de-cartaz.
Depois de Ricardo Marques ter aberto a noite de concertos que se avizinhava, os Dead Combo subiram ao palco para apresentar a sua música de fusão, veiculada por um conjunto de artistas reminiscentes de uma banda de um qualquer bar subterrâneo cool. Com as suas melodias roqueiras carismáticas e ritmos agitados (a cargo do fantástico Alexandre Frazão, que claramente se divertiu imenso no seu papel de baterista), arrancaram fortes aplausos do público que, à medida que a noite avançava, se abanava e entusiasmava cada vez mais, tanto pelo ritmo que se ia apressando a cada canção, como pela necessidade de afastar o frio que se fazia sentir cada vez mais.
À irrequieta “Rumbero”, apesar de faltar o violino esganiçado, não faltou a ginga característica; “Cuba 1970” abrandou o passo, mas aqueceu o ambiente com a sua guitarra à espanhola. O ponto alto do concerto veio quando Tó Trips e Pedro Gonçalves ficaram sós em palco e se uniram numa interpretação sentida de “Esse Olhar Que Era Só Teu”. O público, sentindo uma espécie de gravidade tácita, silenciou-se totalmente para ouvir o ecoar da guitarra eléctrica por entre as árvores do parque. No final do curto espectáculo, não podia faltar a incontornável “Lisboa Mulata”, música que deu a conhecer este virtuoso duo (aqui sob a forma de quinteto) a muito boa gente.
Sentia-se o burburinho no ar pela aproximação da hora esperada, apenas mitigado pela disposição do público, que retirou alguma da proximidade e intimismo que se requeria neste momento de ânsia, especialmente quando o forte vento frio passava por entre as frestas de gente e fustigava os festivaleiros. No entanto, quando os quatro elementos entraram em palco e tomaram os seus lugares, dispostos lado a lado, pouco mais importou para além da música que tocaram.
Começam por servir um aperitivo tranquilo, a par da escola de jazz de onde o projecto originou, com arranjos minimalistas mas arrojados. Logo a seguir, atiram-se a “Speaking Gently”, um dos destaques de IV, o mais recente álbum. A canção brilha com as teclas estelares tocadas por James Hill, imediatamente reconhecidas pelo público, mas não perde muito tempo até ir explorar novos terrenos numa viagem alucinante movida pelo saxofone de Leland Whitty, levando quem está a assistir consigo, para depois voltar à base e ser terminada com mestria.
A abordagem da banda ao vivo passa essencialmente por este processo: entregar a canção ao público, sob a forma que ele a reconhece e com a qual vibra, para rapidamente transformá-la em algo novo e entusiasmante, que se liga novamente à versão de estúdio no final. As pontes de improviso que unem as pontas não perdem ímpeto graças à qualidade dos músicos, cuja intuição os permite seguir impulsos inesperados: mudanças de ritmo, dissonâncias, solos… enfim, uma paleta rica de técnicas para subverter as canções à sua vontade. A jovialidade dos membros – ainda na primeira metade dos 20 – confere-lhes um ritmo e descontracção que tornam o espectáculo muito fluido. No entanto, a pose que apresentam é de quem conhece aquelas lides por experiência própria, com uma maturidade e confiança surpreendentes. Não nos cansaríamos de louvar a atitude dos BBNG em palco, ainda para mais quando o porta-voz da banda – o baterista Alex Sowinski – puxa por nós com genuinidade, pedindo à plateia sentada que se levantasse para dançar a canção de Kaytranada na qual colaboraram, “Weight Off”, não sem antes elogiar o músico e grande amigo da banda.
Mas não só de impulsos se fazem os concertos dos BBNG. Os detalhes também importam, e muito. O Fender Rhodes de “Kaleidoscope” despoleta emoções com a sua beleza, assim como o saxofone sensual e contido de “Chompy’s Paradise”. Até um interlúdio comandado por James Hill e pelo baixista Chester Hansen impressiona com as suas teclas dissonantes e baixo sedoso.
Entretanto, Alex e Leland regressam ao palco com uma pequena dança que faz as delícias do público e Alex urge novamente a que o público “se levante e se aproxime”. Se foi uma dica, a carapuça serviu a quem ocupava a lateral esquerda do palco, que abriu espaço por entre as grades. Como o sangue de um corte profundo, o público jorrou para dentro da plateia VIP, enchendo a boca de palco numa reivindicação do direito de proximidade que se pedia implicitamente desde o início. Os seguranças presentes acabaram por estancar a passagem de mais público, mas já era tarde demais: a barreira havia sido quebrada.
A partir daí, nem banda nem público quiseram arredar pé. O final anunciado de “Lavender” (mais uma colaboração com KAYTRANADA) acabou por ser falso alarme, graças às ovações do público, que ainda arrancaram a banda dos bastidores para um encore ao som de “CS60”, em que foi pedido ao público para se baixar até ao chão e saltar na rebentação do clímax sonoro da canção. Entre estas duas, passámos ainda pela versão mais dançável (e mais interessante que a de estúdio) de “Confessions Pt. II” e pela requintada canção que faz jus ao seu título, “Cashmere”. Nesse momento, em que a homogenia de público já estava mais estabelecida, sentimos sinestesia. A sensação do vento frio nos braços despidos, o cheiro do caramelo doce das pipocas, as luzes coloridas que retiravam os contornos às árvores numa paisagem impressionista; tudo isto se uniu à música, numa conjugação que nos trouxe de volta boas sensações do passado. Não há mais que valha a pena dizer.
A aposta do EDP Cool Jazz foi ganha. Os BadBadNotGood, mais uma vez, convenceram-nos.