O Bairro da Jamaica e uma série de questões importantes
Comecemos por fazer um exercício que apela, apenas, à imaginação de cada um. Suponhamos que temos de deixar o nosso país em busca de melhores condições de vida e que, chegados ao destino e desprovidos de meios para uma integração plena no centro da nova cidade que iremos habitar, somos obrigados a ocupar “habitações” precárias, localizadas na periferia urbana. Suponhamos, ainda, que isto tinha acontecido no século passado e que o inevitável crescimento da cidade nos tinha empurrado, cada vez mais, para longe do centro, obrigando-nos, de novo, a deixar para trás o que tínhamos conseguido construir até à altura. O que acabei de relatar é parte da história daquilo a que chamamos “bairros sociais”. Compreendo que este não seja um exercício fácil de realizar: ou porque habitamos as “boas zonas” da cidade, e nunca nos negaram a entrega de uma pizza, ou porque somos brancos e não sabemos o que é não conseguirmos um emprego pela cor da nossa pele.
Os mais recentes acontecimentos do Bairro da Jamaica e as réplicas posteriores reavivaram uma série de importantes questões que, de uma forma ou de outra, fingimos não existirem, como a habitação precária em Portugal e o racismo estrutural. Outra dessas questões, e que por oposição às últimas duas tem estado na ordem do dia, é o facto de estes acontecimentos poderem ser aproveitados por uma direita extremista, com ânsia de crescimento, que é desvalorizada no nosso país por acreditarmos, ainda, na sua insignificância.
Não me interessa discutir quem teve razão, isso caberá aos tribunais, parecendo-me, até, precipitado retirar quaisquer conclusões de vídeos que se limitam a mostrar parte do acontecimento e de declarações que pretendem atender aos interesses da parte que são proferidas. Precipitado não é, no entanto, concluir, com base, por exemplo, no relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, publicado no mês de outubro do ano passado, ou nas estatísticas reveladas pelo jornal “Público”, numa reportagem de 2017 onde eram descritas as diferenças na justiça para negros e para brancos, que a violência policial baseada no racismo e na xenofobia é, de facto, uma realidade. Precipitado não será, também, afirmar que Portugal é um país racista, ainda que o politicamente correto nos coaja a não tecermos comentários desse calibre.
Por outro lado, é precipitada qualquer opinião contra os moradores do Bairro da Jamaica, assim como é a generalização daquilo que foi um acontecimento localizado, para todos as pessoas negras, imigrantes ou de outras etnias. Nem por um momento, quem embarcou na simplicidade do ódio nas redes sociais ou que, diariamente, não se inibe de maltratar as referidas pessoas, parou para pensar onde é que a sua grande maioria vive e como é que o seu país o permite, porque é que aí vive e em que condições. Este é um exercício semelhante ao que tentei que o leitor fizesse no início deste artigo e que, de novo, compreendo que não seja fácil de realizar para o cidadão comum. Acredito, aliás, que a ignorância deste se deve, num primeiro momento, aos mecanismos e acções do Estado que, a existir, se têm demonstrado claramente insuficientes no combate ao racismo e à xenofobia. A par do engrandecido discurso sobre os descobrimentos portugueses, a escravatura não é esmiuçada nas escolas, o debate sobre o racismo é varrido para debaixo do tapete e quando fenómenos destes acontecem fazemos um remendo rápido numa ferida já há muito aberta e que, de certeza, não será desta forma que irá sarar.
Hannah Arendt escrevia, no início da sua obra “As Origens do Totalitarismo”, que foram muitos os historiadores que, sendo ou não sendo judeus, passaram por cima da análise da origem do anti-semitismo porque acreditavam que este, ao ser “eterno”, tornava o ódio aos judeus uma “reação normal e natural e que se manifestava com maior ou menor virulência segundo o desenrolar da história”. Ficou provado, posteriormente, o quão grave foi ter-se colocado o ódio aos judeus na esfera da normalidade, como me parece estar a acontecer com fenómenos semelhantes aos conhecidos esta semana. Igualmente ou, ainda, mais grave do que a banalização de ideias perigosas (se, como dito por Daniel Oliveira, lhe pudermos chamar de ideias) é a negação das acusações proferidas contra as mesmas. Sobre isto, aquando da publicação do já mencionado relatório da Comissão Europeia, o ministro da administração interna, Eduardo Cabrita, veio a público negar as acusações de “prática reiterada de violência policial de natureza racista”. Enquanto o exemplo e os meios não vierem de cima, parece-me complicado uma abertura expressiva vinda de baixo.
Acredito, claro, na força das pessoas que, quando unidas, têm mais voz do que o próprio Estado. No entanto, como os mais recentes acontecimentos globais nos têm demonstrado, esta força tem sido canalizada para o ódio, transformando-se, posteriormente, em votos numa direita que finge descomplicar aquilo que é bem complicado e que, numa tentativa (bem sucedida) de reconforto aos nossos corações assustados, afirma que não deixará a nossa casa ser destruída e o nosso emprego roubado por um suposto terrorista que atravessa o mediterrâneo de barco e que, actualmente, representa a grande ameaça à segurança nacional.
Numa altura em que o fascismo cai na esfera da normalidade nos programas da manhã e em que André Aventura prepara o lançamento do seu novo partido que, entre uma outra data de coisas, defende, exactamente, um maior controlo das fronteiras, o perigo à segurança nacional parece-me estar, sim, reflectido, nos constantes ataques à nossa Democracia. Parece-me, também, urgente debater abertamente o racismo e a xenofobia e parar de ignorar aquilo que são os problemas concretos desta população que, despejada para locais insólitos das cidades, só dificilmente pode aspirar a uma integração plena na sociedade.
Mais importante do que discussão sobre quem teve ou não teve razão no caso do Bairro da Jamaica, mais importante do que entrarmos em generalizações precipitadas e comentários a quente, é preciso percebemos o porquê de isto ter acontecido, o porquê de existir um “Bairro da Jamaica” e um país onde racismo e democracia coabitam como duas faces da mesma moeda.