Baliza a baliza: crónica de um jogo sem vencedor

por João Tibério,    20 Novembro, 2021
Baliza a baliza: crónica de um jogo sem vencedor
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«Quanto teatro existe no grande teatro do futebol? 
Quantos palcos cabem dentro do rectângulo relvado?» 

Eduardo Galeano in Futebol ao Sol e à Sombra

Galeano. Tal como Garrincha, há sempre um génio que dribla as ideias preconcebidas, que abre o livro e que nos deixa de caneta na mão frente à folha branca, qual assustadora baliza cheia por um imponente Yashin.

Crescemos a ouvir que o futebol é algo desprezível, que apenas conta para o Totobola, mas, depois, mestres como Arrigo Sacchi lembram-nos de que «o futebol é a coisa mais importante das menos importantes». Lemos nas paredes que «o mundo da bola foi criado pelos pobres e roubado pelos ricos» e nos jornais que o futebol dos milhões vive da exploração dos trabalhadores esquecidos no Qatar (mais de 6500 trabalhadores migrantes já morreram enquanto se prepara o Mundial de 2022). Acreditamos que podemos ser o próximo Messi ou Cristiano e esquecemos todos os Vítor Baptista ou Justin Fashanu que ficam pelo caminho. Vivemos para o derby, aquele momento em que o tribalismo se exacerba e gostamos do nosso clube enquanto desprezamos brutalmente o rival. O futebol é isto, sempre foi, e sempre será um jogo de dicotomias, um eterno baliza a baliza sem vencedor final.

Este jogo de emoções onde a razão parece ficar do lado de fora do estádio também apaixona vários camisolas 10 que facilmente podiam encher uma enciclopédia de renome, basta imaginar Albert Camus a jogar no Racing, George Orwell de cerveja na mão nas roulottes, Jean-Paul Sartre a escolher um cachecol do seu clube para oferecer a Simone de Beauvoir, Nelson Rodrigues a discursar na Assembleia Geral do Fluminense, Eduardo Lourenço a ouvir o relato na rádio, entre muitos outros. Então, qual o espaço para o mundo do futebol nas nossas vidas? 

Todo. O futebol está em todo o lado. E esse é talvez o segredo menos bem guardado, mas mais dissimulado de todos. Se conseguirmos ver para lá das quatro linhas, naquele terreno vasto que o VAR não vê, há todo um mundo por descobrir. Futebol é Política, Economia, História, Ecologia, Filosofia, Sociedade, Religião, violência, arrependimento, aprendizagem, amor, vida e também morte — já dizia Dani Rojas. Futebol é o aprender a perguntar no colo da avó ou o descobrir das primeiras respostas no primeiro dia de aulas.

O futebol é um lugar estranho. É mesmo. Consigo imaginar Bob Harris a ser guiado pelo mundo dos pré-jogos, dos away days, dos stickers, dos museus privados e, sempre de whisky na mão, a perguntar a Charlotte que mundo é este onde tantos parecem falar outra língua.

Uma das ideias fundamentais a reter da contemporaneidade, e isto não é de forma alguma uma crítica, é que vivemos em bolhas feitas bem à nossa medida. Só ouvimos quem fala a nossa língua, só lemos os livros que nos validam e acabamos a escolher os nossos interesses num mundo a la carte. E há até algo de confortável em viver entre aqueles que concordam com quase tudo o que pensamos e dizemos. Porém, isso não chega. Temos de sair da nossa zona de conforto — sem precisar de ir para fora, calma —, precisamos de calçar os sapatos dos outros e sentir os pés apertados. Doi. Custa. É difícil perceber que a nossa mundividência não é a única, muito menos é perfeita.

Há uns dias, em pleno campo de batalha ou como alguns lhe chamam também, Twitter, o Ricardo Esteves Ribeiro, um dos elementos que compõem o Fumaça, elogiava o podcast Brinco do Baptista: «Eu nunca dei hipótese ao Brinco. Dirão vocês que sou elitista, estúpido. Mas não dei. Era “um podcast sobre futebol”, achava. E grande. Cada episódio era maior do que a minha vontade. Hoje descobri: o Brinco é uma pedra no charco. Não é um podcast sobre futebol. É muito mais.» Mentiria se dissesse que um elogio ao meu/nosso trabalho não fosse algo bom. Mais do que isso, o Ricardo assume que existem bolhas — ou apenas mundos que preferimos em relação a outros —, e que por isso nunca ouvira o Brinco, ou outros projetos que têm o mesmo propósito. Depois seguiram-se comentários dos que concordaram e dos que discordaram, o que é algo normal e salutar. Posso até garantir que ninguém foi cancelado no seguimento desta conversa, contudo parece-me que muitos olharam para o dedo e não para a lua. 

A ideia mais importante no elogio do Ricardo ao Brinco não se resume ao trabalho que temos realizado nos últimos anos, o que devemos retirar e valorizar é a importância de escutar, ler, ou observar o outro. Só podemos realmente compreender o mundo na plenitude — será isso possível? — se também ouvirmos aquilo que nos provoca estranheza. E isto está longe de ser um caminho fácil. 

No caso concreto do Brinco do Baptista, começámos por falar de futebol e histórias antigas, depois sobre clubes e figuras míticas, aos poucos os temas foram mudando para o racismo no mundo do futebol, a linguagem e a Filosofia, as mulheres sem voz e, de repente, o Brinco era outra coisa. Fomos perdendo a voz e ouvindo mais os convidados. Passámos a alunos aplicados, na primeira fila, que tornaram cada episódio uma última lição. E o futebol foi sendo cada vez algo mais discreto. 

Hoje sei que a primeira fila está cheia de gente curiosa como nós, pessoas que amam futebol e que aprenderam a ouvir histórias, a não temer o desconhecido, a ouvir o outro. Hoje sei que também estamos a chegar aqueles que viam o futebol como algo menos interessante e isso é uma vitória. Até pode parecer uma vitória nossa, só que ninguém joga sozinho e são cada vez mais os projetos ou podcasts — Hemisfério Desportivo; O Futebol, a História e a Política entram num bar — que rompem barreiras e preconceitos, e isso é bom, muito bom. Termino roubando, mais uma vez, palavras a quem descrevia o mundo melhor do que eu: «Mudam-se os tempos/ Todo o mundo é composto de mudança/A vida vai mudando, somos mutáveis/ Tememos o desconhecido», saibamos por isso tornar o mundo que nos era desconhecido numa quente voz amiga.

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