“Barbie”, de Greta Gerwig: o questionamento meta-moderno do feminismo ou como bem-dispor uma audiência
Este artigo pode conter spoilers.
Greta Gerwig juntou-se a Noah Baumbach para escrever o tão aguardado Barbie, o prometido filme-salvador, a par com “Oppenheimer” de Christopher Nolan, das bilheteiras de cinema. O resultado é uma sátira meta-moderna, repleta de pastiche e humor acídico que entretém e bem-dispõe sem desesperar no comentário político e social que propõe.
Para que todos os problemas de desigualdade de género desparecessem, foi colocada nas prateleiras uma boneca revolucionária ou, pelo menos, assim acreditam aqueles que vivem no “mundo de brincar”. Abrimos com uma sequência, em espírito pós-moderno, num pastiche ao 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, que explica, precisamente esta redenção que a boneca da Mattel representa para a igualdade de género. Um típico bebé Nenuco rodopia pelos céus e o famosíssimo match cut, que anuncia a passagem de todas as eras, encarrega-se do título em cartão: “Barbie”.
Seguimos o quotidiano de uma “Stereotypical Barbie”, protagonizada por Margot Robbie. Uma “Barbie Girl, in a Barbie World” onde todos dias são perfeitos e não existe tristeza, aborrecimento e autorreflexão, até ao dia em que a protagonista começa a ter pensamentos súbitos e inevitáveis sobre a efemeridade da vida.
Seguindo o típico esquema da jornada heroica, Barbie decide ir visitar a Weird Barbie (Kate McKinnon) — assim chamada pelas outras Barbies nas costas, mas também à sua frente — e descobre que existe algo a criar entropia entre o seu universo, “de brincar”, e o “mundo real”. Para reestabelecer a ordem no seu dia-a-dia, Barbie, involuntariamente acompanhada por Ken (Ryan Gosling), parte numa jornada pela “realidade”.
Enquanto a protagonista é confrontada com os pesares e encantos do mundo real, Ken descobre o patriarcado, que não entende bem o que é, mas deve ser bom, já que o homem é que manda no mundo e é um conceito, provavelmente, relacionado com cavalos.
Durante o filme, Gerwig demonstra, como já tinha feito em títulos como Lady Bird (2017)e Mulherzinhas (2019), ser uma grande conhecedora da gramática cinematográfica. A sua capacidade em transpor e traduzir as qualidades de um argumento ao audiovisual não deixa de surpreender. Com Barbie, o investimento da produção é claro: adereços, guarda-roupa e, claro, design de produção. Existe, por isso, um cuidado no trabalho de realização em conjugar diferentes elementos, diversificar aquilo que poderia tornar-se um cenário aborrecido e jogar com o mesmo para fazer o enredo avançar, enquanto se brinca, concomitantemente, com a nostalgia de quem conviveu, na sua infância, mas também na vida adulta (enquanto mãe) com este universo de plástico.
Existem, não obstante, momentos em que o humor do filme se torna indeciso. Quando os dirigentes da Mattel, chefiados pela personagem de Will Ferrell, são confrontados com a fuga da Barbie para o mundo real, a sua atitude excede a paródia e torna-se uma espécie de matrioska de Baudrillard. Tratando-se feito em parceria com a própria Mattel, parece existir uma necessidade de demonstrar que a produção não sucumbe à forma comercial e de reforçar que todo o filme não se trata de um anúncio aos produtos da marca, não existindo, por isso, medo de apontar o dedo àquilo que a instituição foi e é. No entanto, esse mesmo comentário, há que dizê-lo, passa em pele de cordeiro cor-de-rosa. Os valores originais da companhia norte-americana parecem, a determinado momento, constituir o âmago narrativo e emocional do filme, que possuía engenho suficiente para alcançar essa dimensão sozinho. No entanto, por um lado, ainda bem que mais atenção não é colocada sobre o assunto ou o discurso crítico do filme tornar-se-ia demasiado óbvio e excessivamente meta (como aconteceu, a título de exemplo, com o último The Matrix). O paradoxo é amenizado pela figura Will Ferrell que, como sempre, entrega, entre a parvoíce, a sátira e o cringe, uma performance justa e divertida. Os apontamentos são feitos com ênfase suficiente, mas através de um b-plot atado à pressa: todo o quadro dirigentes da Mattel é constituído por homens, muitos das bonecas canceladas e descontinuadas tinham características, no mínimo, estranhas, a entidade corporativa joga sempre pelos interesses monetários e por aí fora.
O universo do filme torna-se palco para uma encenação ou a casa de bonecas para uma enorme brincadeira onde apenas uma coisa permanece real: as emoções. Os momentos de suspensão de Barbie são, talvez, os melhores do filme, crédito no cuidado de amplitude emocional no acting de Margot Robbie, mas também da escrita de argumento. Ainda que frequentemente o humor satírico entre em conflito com o humor físico, numa tentativa de agradar a todo o tipo de espectadores, Gerwig e Baumbach não temem a fronteira entre o drama o humor. O argumento carrega nas teclas graves do piano e agarra o carácter emocional presente no questionamento primário do filme. Somos levados a abraçar esse lado, mais emotivo, até este ir, já no clímax narrativo, uns centímetros longe demais e tocar, por breves segundos, no “sentimentalão”, mas que acaba por ser dissolvido num epílogo divertido.
A grande questão que o filme coloca é: terá a Barbie contribuído para o empoderamento feminino ou simplesmente criado expectativas irreais e inalcançáveis sobre as mulheres e o seu papel na sociedade? A resposta surge numa reflexão sobre autoconsciência através de um filme que é, por si só, auto consciente. “E como tudo o que é coisa que promete”, o filme Barbie corresponde às expectativas. Através de uma composição audiovisual hipnotizante e de um discurso meta-moderno, Gerwig brinca com temáticas como papéis de género, capitalismo, imagem corporal e feminismo numa leitura refrescante, produzida com acidez cítrica, e num embrulho de pastilha elástica.