‘Barry’, e a arte subtil da interpretação
No seu último livro, Manual do Bom Fascista, Rui Zink conta uma piada sobre o Julgamento de Nuremberga, onde um juiz, durante o julgamento, lê o auto a um ex-guarda de um campo de concentração:
«Você matou estas pessoas todas… Como se declara?
«Inocente.»
Os juízes, supreendidos, replicam:
«Como assim, inocente?»
«Estava só a cumprir ordens!», responde o ex-guarda.
Depois entra o comandante e o juiz lê a acusação:
«Aconteceram monstruosidades no campo de concentração que você dirigia, como se declara?»
«Inocente, senhor doutor juiz.»
Incrédulos, os juízes perguntam:
«Inocente? Como assim?»
«Estava só a dar ordens.»
No livro “Eichmann em Jerusalém”, Hannah Arendt aprofunda o conceito de “banalidade do mal” através da figura de Adolf Eichmann, um dos rostos principais do regime nazi e do Holocausto, julgado por genocídio após a II Guerra Mundial. Através dessa reflexão filosófica, Arendt debate-se com o facto de Eichmann surgir a julgamento não como um sanguinário imoral, mas como um operacional que apenas obedeceu a ordens e exerceu as suas funções. Há, portanto, uma desvalorização dos princípios morais sobre um “dever ser”, tornando assim exercício de violência em não mais que o mero cumprimento de uma ordem e da sua obrigação perante o regime nazi vigente à época.
Na série, Bill Hader é Barry, um ex-marine tornado sicário que em conjunto com o seu único amigo (?) Fuches (Stephen Root), mata pessoas por encomenda. A premissa é relativamente simples, até que Barry decide deixar essa vida depois de um último golpe e dedicar-se… ao teatro. Nega ou tenta fugir ao seu passado de obediência servil para seguir algo que realmente quer. Luta contra o seu “eu” operacional, o seu “eu” onde sempre esteve imerso sem questionar. O nonsense cómico da situação e o resultado desastroso da escolha de Barry leva-o por complicações que dão a mão entre a comédia e o drama violento de forma indissociável e nem sempre trazida aqui pelo suspeito principal pois o actor e comediante Bill Hader foge completamente ao seu habitat natural de Saturday Night Live de onde ficou conhecido.
Essa contraposição cómico-trágica é trazida sim por personagens mais “terciárias” como Noho Hank (Anthony Carrigan), um fantástico criminoso com quem não deixamos de nutrir certa simpatia, o incorrigível Fuches, interpretado por Stephen Root ou até pela ingenuidade de Sally (Sarah Goldberg). Se esta distância aparentemente proibida de conjugação de estilos aparece-nos enquanto “miscelânea” impossível de realizar, Barry desmonta esse preconceito fazendo isso mesmo. Aí reside o maior elogio que se pode fazer à realização e escrita da série criada por Alec Berg e Bill Hader, mas sobretudo a capacidade de interpretação e alcance de opostos emocionais e interpretativos dos actores durante toda a série que conta já com duas temporadas na HBO.
Barry é superficial, mas não num mau sentido. É, inclusive, propositado. Barry deixa de ser o funcionário que age perante imposições superiores e humaniza-se ao mesmo tempo onde raramente somos expostos a uma tentativa desnecessária de sentimentalismo sendo de facto complicado entrar no debate interior da riqueza das suas personagens. O despretensiosismo da série potenciam as suas qualidades.
Vencedora de um Emmy para Melhor Actor em Série de Comédia, outras tantas nomeações para as principais categorias (onde se encontra a de Melhor Série), e igual reconhecimento nos Globos de Ouro onde voltou a estar nomeada para várias categorias (Melhor Série de Comédia, Melhor Actor em Série de Comédia e Melhor Actor Secundário em Série de Comédia), Barry é sem dúvida um dos melhores conteúdos actuais disponíveis no já vasto cartaz da HBO. Bill Hader é magistral na interpretação deste sicário que deseja prosseguir carreira de actor pelo amor. Consegue ser frio e calculista mas também demonstra profundeza emocional, algo até aqui surpreendente e que, não fosse a série ficção, dir-se-ia que tinha sido aprendido nas aulas de teatro.