Beatriz Lebre. A cobertura do caso romantiza a violência e é cúmplice da misoginia
Dois casos de crimes misóginos nesta semana estamparam as notícias em Portugal. O primeiro, a violação de uma jovem descrita na manchete como “sexo”. O segundo, com ainda mais repercussão, foi o feminicídio de Beatriz Lebre, uma jovem de 23 anos, assassinada por um rapaz de 25 anos. O corpo foi encontrado na tarde de sexta (29), no rio Tejo.
Nos dois casos, parte da imprensa portuguesa prestou um desserviço à população, ao não divulgar as notícias como determina o código de ética da profissão. Pior ainda, age como cúmplice quando não descreve a realidade dos casos por um ponto de vista de género, uma discussão que está bastante avançada socialmente, mas que ainda não se faz presente em parte da comunicação social portuguesa. É um problema grave que merece atenção dos meios se regulação da mídia no país, já que por si só, não conseguem ou não cumprem o dever jornalístico.
Tomemos como exemplo a notícia “Amor doentio! Beatriz Lebre assassinada brutalmente por amigo de faculdade que a perseguia obsessivamente”, divulgada pelo site Flash, que cita as informações da CMTV no texto.
Não é necessário ser jornalista para perceber que o primeiro artigo do Código Deontológico está a ser desrespeitado. “1. O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade”. Ao tratar o feminicídio de Beatriz como “Amor doentio” na manchete, a imprensa romantiza o ato como se fosse amor, e não um crime misógino. No texto, a publicação reforça mais uma vez a ideia errónea. “Rúben tinha uma paixão avassaladora pela jovem, mas ela recusava os avanços”, avança a publicação, que não peca só no título.
Ao tratar o caso desta maneira, demonstra que nós mulheres não temos o direito de dizer “não”. De fazermos as nossas próprias escolhas de vida. Que, para nos mantermos vivas e seguras, devemos sempre atender aos desejos dos homens. Ao mesmo tempo, é uma narrativa que reforça aos homens um direito que não possuem, que é o decidir sobre nossas vidas. Que ao ser rejeitado, a solução é o assassinato.
O site MSN Portugal, que publica uma notícia da TVI24, vai na mesma linha ao citar “ciúme”, o que demonstra falta de apuração no caso, como se Beatriz tivesse uma relação amorosa com o feminicida. Mesmo que tivessem, colocar o “ciúme” como motivador de um assassinato é cruel e reafirma a narrativa misógina de que os homens são proprietários das mulheres e de que a culpa foi da vítima. Mas a vítima jamais é culpada.
São inúmeros os problemas descritos em tão poucas linhas do texto, que é irresponsável e anti-ético do ponto de vista jornalístico, porém ainda mais grave do ponto de vista humano, com uma falta de empatia que nos faz duvidar que tenha sido escrito por um ser humano. Mas foi. Por isso, quando o jornalista adota tal narrativa, torna-se cúmplice do crime, seja de maneira consciente ou inconsciente.
Novamente, mais um artigo do código é violado. “6. O jornalista deve recusar as práticas jornalísticas que violentem a sua consciência”. Não é possível que ao escrever que Beatriz foi morta por causa de uma “paixão avassaladora” seja possível estar em paz com a consciência. O jornalismo não pode ser uma profissão para despreparados, diante da importância da prática para a sociedade.
Por fim, o artigo 8, que diz “O jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor” também não é cumprido, já que grande parte dos media explora ao máximo o crime de maneira sensacionalista e não demonstra nenhum respeito pela dor da família de Beatriz. A capa do jornal Correio da Manhã, por exemplo, estampa que “Beatriz foi desfigurada”, e abaixo citada como “cadáver”, com detalhes que nada fazem além de aumentar o teor sensacionalista, que deve ser combatido, conforme o artigo dois do código já aqui citado. Mais um exemplo do sensacionalismo é o fato de ter um drone a sobrevoar e gravar o momento que o corpo de Beatriz Lebre foi encontrado e identificado pelas autoridades
No Twitter, muitas pessoas, especialmente mulheres, demonstraram-se indignadas com as publicações dos media, mas mesmo assim estas não foram removidas ou alteradas. Continua lá, por exemplo, a manchete “Amor doentio”, como se fosse por amor, e não por ódio, que Beatriz Lebre foi assassinada.
Feminicídios noticiados desta maneira rasa e culpabilizadora não cumprem o dever jornalístico. Aliás, a palavra “feminicídio” não é mencionada na cobertura da imprensa deste caso. Em Portugal o termo ainda não é utilizado como deveria. Demarcar que assassinatos de mulheres não são apenas homicídios é uma maneira de promover no debate social a questão de género envolvida nestes crimes.
Mais do que deslizar eticamente e humanamente, a imprensa esquiva-se do debate central destes casos, que é a misoginia e os direitos das mulheres. Neste momento é compreensível que todas as atenções estejam voltadas para a cobertura da pandemia de Covid-19, mas a pauta de género não pode ser deixada de lado e divulgada apenas quando ocorrem crimes como o de Beatriz. Nunca deixa de ser urgente a discussão por parte da imprensa, que ainda tem muito a evoluir neste quesito. É sobre jornalismo, é sobre vidas e sobre construir um mundo menos violento para todas as mulheres.
Nós sabemos que ainda vai demorar para que seja seguro. Que possamos dizer “não” sem o risco de sermos violadas ou mortas. Um mundo em que os homens sejam ensinados desde criança a respeitar as mulheres e lidarem com as frustrações sem violência. Que entendam o significado do “não”.
O jornalismo, através das narrativas que divulga e dos debates que propõem, tem um dever fundamental nesta construção que está longe de ser finalizada. Grande parte da comunicação social em Portugal, por desconhecimento ou linha editorial, ainda não está alinhada nesta construção, mas empenhada em fazer o contrário.
Artigo escrito por Amanda Lima e originalmente publicado em Espalha Factos.