“Beau Tem Medo”, de Ari Aster: uma odisseia da psique
Este artigo pode conter spoilers.
Ari Aster é um dos realizadores mais relevantes atualmente e um dos nomes do cinema de horror mais pertinentes. Até agora, deu-nos dois clássicos do género, “Midsommar: O Ritual” (2019) e “Hereditário” (2018), o último mudou a forma de assustar no grande ecrã. A sua mais recente obra, “Beau Tem Medo, ou em inglês “Beau Is Afraid”, é uma verdadeira odisseia da psique, uma sessão de terapia prolongada ou um ataque de pânico com a duração de três horas.
Beau (Joaquin Phoenix) é uma versão anémona e pós-moderna de Norman Bates, mas sem qualquer tipo de instinto matador. Um solteirão de meia-idade, com a cabeça repleta de inseguranças, ansiedades e “mommy issues”. Parece justificável, afinal, Aster concedeu, a este seu protagonista, um universo que de tudo faz para o ver morto.
O primeiro incidente desencadeador da ação narrativa dá-se quando as chaves de casa de Beau são roubadas no momento em que este, já atrasado para o voo que prometia uma ida à casa da sua mãe, se preparava para sair de casa. A partir desse momento, impossibilitado de viajar, Beau tem de lidar com os efeitos adversos de tomar a sua medicação sem água, um louco que esfaqueia pessoas indiscriminadamente na rua, a sua casa invadida por centenas de desconhecidos, tudo isto num bairro onde a delinquência, a criminalidade e o caos imperam.
Existe, ainda, no decorrer do segundo ato do filme, um casal excessivamente simpático, Grace (Amy Ryan) e Roger (Nathan Lane), Jeeves (Denis Menochet), um veterano de guerra perturbado que persegue incansavelmente o protagonista e Toni (Kylie Rogers), uma adolescente que lhe inferniza a vida e o polui com uma dose exorbitante de droga. A acrescer a tudo isto, soma-se uma companhia de teatro ambulante, perdida numa floresta de Dante e uma besta aterradora (perturbadoramente fálica) que promete eriçar os cabelos de David Lynch.
O filme é tolo, mas não por ser vazio ou desprovido de sentido moral ou estético, já que Ari Aster conhece bem os cantos ao ofício e já provou o seu valor, enquanto realizador e argumentista, mas antes porque é, precisamente, nessa “tolice” que o espírito existencialista do filme se faz sentir. É no humor corriqueiro, acídico e perturbador que reside a audácia de “Beau Is Afraid”.
Não é certo que exista um comentário ao próprio género do terror para dizer: “É assim que se faz, agora vejam e aprendam!”, a proposta é mais modesta e, talvez, não tão óbvia. No entanto, é evidente, que à semelhança de “Funny Games” (2007), de Michael Haneke, também Aster se serve dos trunfos de um género narrativo para contrastar, no caso de “Beau Is Afraid”, dois tipos de conflito, um interno e outro externo e, desta forma, olhar para duas formas distintas do cinema, o realismo e o expressionismo.
As sequências do filme encontram-se repletas de obstáculos externos e é através do absurdo desses mesmos obstáculos que Aster disseca o psicológico do protagonista. O género do terror tem uma obsessão compulsiva de tentar seduzir pela aproximação ao real. Neste cinema, temem-se, frequentemente, as indiscretas letras brancas, que surgem, sem aviso e em fundo negro para indicar: “baseado em factos verídicos”. “Beau is Afraid” traz uma nova proposta à fórmula do sobressalto: uma aproximação à realidade subjetiva e o terror provocado por um estado inquietude incessante. Troca-se o suspense de Hitchcock pela bizarria, o absurdo, o caótico e o surreal de maneira a engendrar uma representação do “Id” freudiano em cinema.
Na forma, Aster propõe um enredo edificado entre os eixos semióticos de “The Shining” (1980) e a imagética do surrealismo perturbador de “Eraserhead” (1977) para explorar o subconsciente de um homem perseguido pelos seus medos e ansiedades. “Beau Is Afraid” é um pesadelo, uma insónia cinematográfica de suar em bica que põe à prova todas as capacidades do realizador e as junta numa amálgama audiovisual caótica e aterradora.
Deve existir uma predisposição para ver qualquer filme de Ari Aster, no entanto, no caso de “Beau Is Afraid”, essa predisposição deve ser reforçada. É fundamental, para aproveitar realmente o filme, escapar ao velho dilema “será tudo na cabeça do protagonista?” e assumir, desde início, que sim. O exagero traduz o inconsciente do protagonista e o pânico, a inquietude e as imagens perturbadoras são aspetos que devem ser assimilados, logo desde o começo do filme, como elementos fundamentais a essa tradução. Caso contrário, quem não o fizer, terá dificuldades em chegar ao final do mesmo e não tenho dúvidas que, neste sentido, esta obra irá desapontar muitos dos fãs de Ari Aster.
“Hereditário” continuará a ser um dos marcos fundamentais do cinema de terror e uma das maiores referências ao subgénero do horror psicológico, “Midsommar”, por outro lado, ficará na história como uma das melhores e mais perturbadoras desconstruções do término de um relacionamento amoroso, por outro lado, “Beau is Afraid” será o “Rope”, de Aster, no sentido em que apresenta uma proeza de realização. Nas palavras de Alfred Hitchcock, transcritas por Truffaut: “I undertook ‘Rope’ as a stunt; that’s the only way I can describe it”.
O trabalho de encenação, direção e execução de fotografia de “Beau Is Afraid” é absolutamente excecional. Já a montagem, apesar de eficiente, perde-se no ritmo alucinante do enlace narrativo e parece apresentar uma grande dificuldade em definir-se no compasso das cenas, servindo-se, por vezes superfluamente, de “match cuts” para emparelhar diferentes momentos e criar um elo entre o passado e o presente.
Existem vários momentos em que o filme exalta, com penas de pavão, o seu domínio técnico-formal, e bem. O destaque mais evidente acontece numa sequência de animação que nos transporta a uma meta-reflexão sobre como a totalidade da vida apenas pode fazer sentido se lhe atribuirmos alguma espécie de coerência narrativa pseudo dramatúrgica.
No enredo, Aster desafia muitos dos mecanismos convencionais da escrita de argumento e a nível temático dilata as barreiras entre o cinema e a psicologia até nos esquecermos do que é o quê.
“Beau Is Afraid” é uma obra completa, realizada à escala de um épico que acena a outros realizadores contemporâneos como Charlie Kaufman, Darren Aronofsky e Robert Eggers. Entre o surrealismo, o expressionismo e o horror psicológico, nas entrelinhas de um enredo críptico e a brutalidade do pesadelo estilo Édipo Pop, Ari Aster conseguiu produzir um filme profundamente catártico — uma característica rara no cinema de horror contemporâneo.
Desengane-se quem ainda acredita que Aster filma pesadelos ou “bad trips” e deixo, ainda, o apelo a que se avalie criticamente este filme uns dias após o visionamento, pois, “Beau Is Afraid” é a representação mais genuína daquilo que este realizador sempre procurou captar, o trauma, algo que apenas pode ser analisado em retrospetiva. O verdadeiro desafio para o cinema de Aster, a partir de agora, será retomar à superfície sem rebentar com os tímpanos.