Jean-Luc Godard e François Truffaut: da Nouvelle Vague ao ressentimento

por Miguel Rico,    27 Julho, 2022
Jean-Luc Godard e François Truffaut: da Nouvelle Vague ao ressentimento
François Truffaut a dar indicações durante as filmagens de “A Noite Americana”
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“Yesterday I saw “La Nuit Americaine”. Probably no one else will call you a liar, so I will”, foram estas as palavras que Jean Luc-Godard escreveu a François Truffaut sobre o seu filme, “A Noite Americana” (de título original, “La Nuit Américaine”), vencedor Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1974. Uma incriminação que não ficou sem resposta por parte de Truffaut.

Antes das acusações epistolares, os realizadores franceses mantinham uma relação próxima de amizade e uma grande consideração pelo trabalho um do outro. No entanto, anos mais tarde, enquanto Truffaut procurava explorar uma abordagem cinematográfica mais comercial, Godard mantinha, mais que nunca, as suas convicções políticas como principal mote de carga nas bitolas. Foi começo da desamizade entre os gigantes da Nouvelle Vague.

Nouvelle Vague, mon amour

O termo Nouvelle Vague foi cunhado em 1958 pela jornalista e ex-ministra da cultura francesa, Françoise Giroud. O movimento surgiu em consequência do grande espírito de contestação que turbilhonava na mentalidade da população francesa durante os anos 60. A “Nova Vaga”, como ficou conhecida em Portugal, surgiu enquanto força de expressão para retratar o amor livre, a revolução sexual e as novas posições políticas e sociais que marcaram o maio de 68. Não obstante, alguns historiadores de cinema, atribuem o verdadeiro “incidente desencadeador” da Nouvelle Vague à estreia dos filmes “Os Quatrocentos Golpes”, de Truffaut e “Hiroshima, Meu Amor”, de Alain Resnais, no Festival de Cannes de 1959.

Em finais dos anos cinquenta, inspirados pelo espírito revolucionário que prometia derrubar o governo Gaulista, realizadores como Eric Rohmer, Agnès Varda, Jean-Luc Godard, François Truffaut e Jacques Rivette davam os primeiros avanços num cinema tão revolucionário e irreverente quanto o espírito dos seus criadores. 

Os realizadores, muitos deles críticos conceituados da Cahiers du Cinéma, na altura impossibilitados de criar por falta de orçamento, abriram discussão para tentar compreender como poderiam exercer um cinema acessível, pessoal e revolucionário em ideias e técnica. Empenhados em redescobrir o ofício e representar o seu quotidiano boémio, Godard, Truffaut, Claude Chabrol e Rivette, apelidados de “young turks”, propunham um conjunto de novas abordagens técnicas que destronassem todos os cânones da linguagem cinematográfica convencional. 

No que concerne à montagem, os filmes da Nouvelle Vague vieram demonstrar que nem sempre a edição deve passar despercebida. Até então, a montagem fílmica era utilizada, na grande maioria das vezes, para assegurar harmonia na continuidade da ação, no entanto, com as novas técnicas dos “young turks”, a montagem passou a exaltar algum tipo de intenção, uma resposta a um estímulo que convocasse uma mensagem narrativa e que exercesse o verdadeiro poder do cinema através da manipulação do tempo em função de uma estória. 

Na direção de fotografia, os autores do movimento francês inovaram na típica fórmula de Hollywood para enquadrar uma cena de diálogo: plano geral ou de estabelecimento, seguido de um plano médio conjunto e, posteriormente, da justaposição entre plano com “contra plano” (ou shot / reverse shot). A proposta dos cineastas franceses era a de reinventar este paradigma tradicional que tinha como desígnio central abstrair o espectador do meio para o envolver na narrativa. Para os “young turks”, era pertinente, e absolutamente indispensável, recordar a audiência do meio com que esta se encontrava a interagir, desta forma, o filme pode atuar diretamente na consciência de quem vê. Podemos argumentar que esta capacidade é, em todo o caso, um princípio mais honesto para se fazer cinema, visto que a linguagem cinematográfica se torna num diálogo, ao invés de um monólogo.

O princípio de camera-stylo, que propõe que um realizador deve recorrer à câmara da mesma forma que um escritor utiliza uma caneta, foi um conceito que surgiu, igualmente, com o advento da Nouvelle Vague. Este conceito foi altamente libertador, na medida em que contribuiu para a proposta central da auteur theory e ajudou a estruturar muita da linguagem cinematográfica contemporânea. 

Travellings picados, panorâmicas fugazes e precisas, captadas pelo andar desnorteado da técnica handheld (sem estabilização) são apenas alguns exemplos de como os realizadores da Nouvelle Vague procuravam ornar os seus filmes de individualidade e remodelar a linguagem cinematográfica. A acrescer a estes elementos, soma-se o “quebrar a quarta parede”, os freeze-frames (que serviam para imortalizar momentos) e a alteração gradual e continua da escala de planos — os novos autores provaram que era possível “captar um plano de estabelecimento” e ir até ao “pormenor” num só plano-sequência, desta forma, a continuidade deixou de ser uma propriedade subordinada da montagem. 

Com o advento da Nouvelle Vague, o cinema ganhara uma dimensão audaz e individual, que brotava da inquietude do espírito artístico e pintava o ecrã prateado de agitação através de uma linguagem cinematográfica autêntica, irreverente e inclusiva. 

O movimento perpetuou-se de forma transversal e a sua influência vai do cinema mais comercial às produções independentes. Atualmente, nuances da Nouvelle Vague podem ser verificadas no trabalho de câmara de realizadores como Wes Anderson, Damien Chazelle, Woody Allen e Quentin Tarantino.

Os “Autores”

A auteur theory pressupõe que o realizador é a força motriz do filme e que, através da sua identidade autoral, os melhores realizadores podem almejar à notoriedade de grandes génios das artes como pintores, escultores e compositores. 

O conceito surgiu em finais dos anos 40 e ganhou dimensão através dos textos de André Bazin e Alexandre Astruc para os Cahiers du Cienema. Em 1962, Andrew Sarris enquadrou a teoria ao contexto norte-americano através do artigo “Notes on auteur theory in 1962”. Para Sarris, a auteur theory envolve três esferas distintas: técnica, estilo pessoal e significado intrínseco, sendo que, o realizador opera em todas elas em simultâneo, moldando, desta forma, o filme à sua imagem. 

Neste sentido, a auteur theory levou a uma distinção particularmente relevante no que concerne à identidade autoral de um filme, sendo que, muitos realizadores (como Visconti, segundo Godard) passaram de uma metteur en scène (em que um realizador assegura uma destreza técnica, mas não acrescenta um estilo pessoal no que concerne à componente estética) a “autores”, onde as três esferas, identificadas por Sarris, atuam concomitantemente. 

Num artigo intitulado “A Certain Tendency of the French Cinema” (1954), Truffaut defende, inclusivamente, que existe um contraste acentuado entre a qualidade num cinema de metteur en scène e o “cinema de autor”, sendo o último bastante superior. 

Segundo Truffaut, o realizador é a autoridade máxima na componente criativa dos seus filmes e a sua identidade estética e autoral não deve, em qualquer circunstância, ser impedida por limitações técnicas. Um auteur é, portanto, segundo “Les Politiques des auteur”, de François Truffaut, o único criador de um filme, ainda que toda a equipa de filmagens e pós-produção tenha o seu devido valor. 

Segundo a política de Truffaut, as restrições técnicas, impostas pelos cânones da linguagem cinematográfica tradicional, devem ser superados pelas ideias, visões ou temáticas distintas que o realizador pretende exaltar. Neste conceito, a acrescer aos gigantes do cinema francês, podemos enquadrar nomes como Alfred Hitchcock, David Lynch, Bong Joon-ho, Christopher Nolan, Martin Scorsese e, ainda, o português João César Monteiro. 

Ainda que a auteur theory parta de uma premissa, à primeira vista, individualista, a sinergia e a amizade entre autores eram alguns dos principais motivos celebrados pelo movimento da Nouvelle Vague. No entanto, enquanto Truffaut e Chabrol enveredaram por uma dinâmica mais comercial e universal, Rohmer e Godard permaneceram radicais na sua forma de olhar para a sétima arte, uma irreverência repleta de ressentimento e, muitas vezes, intransigência para com quem acreditavam serem os novos “dissidentes” do movimento.

Truffaut, o “Coveiro” vs. Godard, o “Temível”

Em finais dos anos 60, Truffaut procurava explorar uma abordagem cinematográfica mais comercial, enquanto Godard mantinha o espírito rebelde, profundamente existencialista e afincadamente marxista. 

O cerne da rutura entre os realizadores encontra-se, em última instância, na forma como cada um destes autores invoca os géneros cinematográficos. Enquanto Godard procura subverter sistematicamente as convenções de cada género, Truffaut opta por reconhecê-las e consubstanciá-las no seu trabalho. 

Jean-Luc Godard, um “pequeno burguês”, nascido a 3 de dezembro de 1930 na região de Île-de-France, é considerado um dos realizadores mais radicais e disruptivos da história do cinema. A sua primeira longa-metragem, “O Acossado” (1960) é o exemplo de como o realizador procurava, à semelhança de muitos outros autores do movimento cinematográfico francês, e partindo de um enredo quase autobiográfico, reinventar a linguagem cinematográfica através de uma posição política e de uma identidade estética singular. No entanto, apesar das suas convicções marxistas, Godard, “o temível”, como é apelidado no filme de Michel Hazanavicius, cresceu rodeado de riqueza e privilégios, com um grande incentivo no que concerne à sua educação cultural. Não obstante, mantendo, sempre, um espírito irreverente, Godard recusou-se a prosseguir os estudos para se dedicar ao módico ofício da vida boémia. Num ato de rebeldia, chegou, inclusivamente, a roubar um Renoir ao seu avô. As suas atitudes e a sua postura perante a sua educação levaram a que a sua opulenta família, em bens e “valores”, o viesse a ressentir. 

Por outro lado, o parisiense François Truffaut (1932-1984) foi criado pelos avós e rejeitado pela mãe biológica para quem teve de regressar aos 10 anos. O novo marido da progenitora, Roland Truffaut, adotou e apelidou o jovem realizador. O casal destroçou, por completo, o espírito do pequeno (grande) realizador e transformou-o numa alma inquieta, num rebelde, infame pelo insucesso escolar, que procurava refugiar-se das aulas nas salas de cinema. Na adolescência tardia, François era um verdadeiro troublemaker, mas, a paixão pelo cinema prevaleceu e foi então que conheceu André Bazin, que o tomou sobre a sua alçada e lhe ofereceu uma posição enquanto crítico nos Cahiers. Truffaut tornou-se num crítico voraz, conhecido pelas suas opiniões ferozes e implacáveis, que lhe vieram a conferir a alcunha “The Gravedigger” (o Coveiro). 

Durante o seu percurso enquanto crítico, Truffaut dissertou sobre alguns dos aspetos mais fraturantes da Nouvelle Vague e entrevistou, inclusivamente, Alfred Hitchock, um realizador que Truffaut considerava altamente incompreendido e subvalorizado. Se Hitchock é, atualmente, considerado um “mestre”, muito desse reconhecimento advém, irrefutavelmente, do conjunto entrevistas que Truffaut procurou analisar em detalhe no seu livro “Hitchcock”.

Godard e Truffaut uniram-se, nas palavras de Godard, e dado o passado conturbado de ambos, “como duas crianças abandonadas”. Conheceram-se através do cinema, enquanto companheiros de sala, e foram ambos trabalhar para a Cahiers du Cinema, juntamente com Éric Rohmer.

Após a estreia do aclamado “Os Quatrocentos Golpes” (1958), de Truffaut, Godard decidiu que estava na altura de ele próprio escrever e realizar um filme e, em 1960, trouxe ao grande ecrã, o já mencionado, “O Acossado”. As primeiras obras dos realizadores ilustram, melhor que qualquer epistola, as grandes divergências entre Godard e Truffaut. Diferenças essas postas de parte, em prol da amizade, até maio de 1968. 

Jean-Luc Godard afastou-se do ofício em 1967, “fim de filme/fim do cinema” ditavam os créditos finais da sua última obra, “O Maoista”. Enquanto isso, Truffaut, que parecia encontrar-se no genérico da sua carreira, começou a produzir dramas do quotidiano, que Godard apelidava de “burgueses”, entre os quais “Domicílio Conjugal” (1970), que viria a inspirar anos mais tarde, em 1973, Ingmar Bergman na produção de “Cenas da Vida Conjugal”.

Após a estreia da película de Truffaut, “A Noite Americana”, vencedor do Óscar de Melhor Filme Internacional, em 1973, Godard escreveu uma carta ao realizador, onde referia que, apesar de ter sido muito aclamado, considerava, dada a ausência de crítica social, aquele seu trabalho um produto da apatia burguesa e Truffaut, já que fez tanto sucesso com “A Noite Americana”, deveria ajudá-lo com o orçamento de um novo filme, para que as audiências soubessem que “não é somente aquele tipo de filmes que se concretiza”.

Em resposta, Truffaut menciona que Godard tem vindo a comportar-se, palavras do próprio, “como umas merdas” (“tu te conduis comme une merde”) e que se recusa a cofinanciar qualquer filme de Godard, que se “julga dono da verdade no cinema, no amor, na política e na vida” e muda sistematicamente a sua mentalidade. 

Apesar da insanável rutura, muitos acreditam, que nas entrelinhas da carta, se encontrava um pedido para reconciliar a amizade e que Godard procurava, através do seu jeito engodilhado, reatar a relação com o seu camarada. Após a morte de Truffaut, Godard escreveu: “Saturno devorou-nos. E nós, pouco a pouco, quebramo-nos um ao outro, de modo a não sermos comidos primeiro. O cinema tinha-nos ensinado a viver, e vingou-se”.

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