Bem-vinda de novo ao seu país, Maria João Pires
O pior dos melhores países do Mundo também ele tem uma das melhores pianistas clássicas da actualidade. É o caso de Maria João Pires (MJP), pianista de origem lisboeta e que durante tantos anos não viveu em Portugal por motivos que não são alheios a quem por cá demonstra laivos de genialidade. O desgosto passa a ser condição sine qua non partilhada por estes ou estas.
É a Classic FM que nos diz que não só é uma das melhores pianistas dos nossos tempos como também uma das melhores da história, granjeando-lhe lugar numa lista com Beethoven, Chopin e Liszt, a título de exemplo. São aliás os primeiros dois, conjuntamente com Schubert, Schumann e Mozart os artistas que mais vezes interpretou e voltou a dar vida, sem nunca deixando de introduzir a sua própria marca quando os toca. Portanto, é com MJP que Anthony Hopkins na série Westworld pode afirmar com cabal certeza: “Mozart, Beethoven, and Chopin never died. They simply became their music.”
São já 6 décadas de actuações e composições encetadas pela artista que com a devida reserva, me arrisco dizer ser pouco conhecida do público em geral dentro das fronteiras lusas. O seu retorno foi um “regresso pianíssimo” como descreve o Jornal de Letras do mês passado, assinalando os concertos que deu no passado dezembro no Centro das Artes de Belgais (Castelo Branco) e que através da venda na internet esgotaram, por si adquirido e construído no virar do século e que deixou de operar por falta de apoios estatais – o apanágio típico da cultura num país que não a valoriza.
Mas neste renovado Centro, onde passará a fazer dele o epicentro das suas operações e retirada temporária de extensivas digressões de concertos, que diz não odiar mas com os quais não se sente tão à vontade, existirão inúmeras iniciativas que abrirão as portas ao cada vez mais afastado universo musical, talvez numa tentativa de se afastar igualmente daquilo que George Steiner chama de “barbarism of organized noise” – a música que hoje em dia é criada e seguida pelo mundo inteiro. Assim, dará lugar a workshops, retiros musicais sendo que a quinta operará igualmente como ecoturismo.
É conhecida e admirada no mundo inteiro, tocou com algumas das filarmónicas mais competentes do ramo e tornou-se um “fenómeno” do mundo virtual quando em 2013 voltou a circular um vídeo seu de um engano “grave” para um(a) artista que esteja em palco mesmo no início de um concerto: MJP seria suposto tocar uma composição de Mozart mas aquando do início da orquestra, é com enorme espanto e súbito pânico que se apercebe que tinha estudado uma diferente partitura que não a que deveria tocar. Mas ainda assim tocou, tocou de memória, porque aquilo que amamos ninguém nos consegue tirar. Apprendre par coeur, se diz no Lycée Français, aquela que é uma das pedras basilares da educação de outros tempos. O episódio pode ser revisitado aqui.
Poderíamos nós juntarmo-nos aos 260.000 ouvintes seus no Spotify todos os meses ou iremos escapar esta oportunidade de que agora que a temos perto, de a conhecer melhor? Ainda que seja um mundo novo até para a minha pessoa, o reconhecimento da música clássica como uma dimensão vital passa por perceber que a que temos hoje veio daqui – por mais longe que esteja -, que a obliteração deste património continental passa pelo empobrecimento da existência (ou como em alemão se diz, dasein) por isso poderemos passar pela vida sem a sensação de alcançar algo que humanamente é possível apontar e nomear como superior a nós, algo transcendente. E é esse o desígnio desta arte e de nós mesmos quando nos propomos a descobri-la – o de encontrar a casa que não sabemos ainda que existe. (cf. Nocturnes de Chopin, no meu caso)
Se é verdade que é nela que se pode encontrar uma salvação, é verdade que a música também não sabe dizer não. O exemplo que me vem à cabeça é o de Wilhelm Furtwängler, principal maestro do Terceiro Reich, que mesmo ouvindo-se os gritos exteriores dentro da Bavarian State Opera dos que lá fora seguiam num comboio a caminho de Dachau, conduziu como poucos um ciclo de Debussy que muitos críticos julgam ser das melhores gravações disponíveis; poderia ele ter-se enganado? “Poderia a música ter tido a capacidade de dizer não? Isto é uma pergunta sem sentido. Ou será uma pergunta sem sentido?” inquire Steiner uma vez mais – e durante toda a sua vida.
Mas a porta continua aberta perante tal indagação, a do Centro das Artes de Belgais, bem como o das mais belas criações artísticas desenvolvidas na história da Europa. Só se dissermos sim e entrarmos, poderá a música dizer não. Porque desta vez se a música não disser não, a música acaba.