Bichinho alacre e sedento

por Romão Rodrigues,    2 Novembro, 2019
Bichinho alacre e sedento
Ilustração de Simone Roberto (@simonemroberto)

No espetro de um ano, a minha vida fez sucessivos rolamentos à frente. Se me dissessem que a escrita seria um dos maiores motivos para a realização pessoal, diria que a pessoa possuía disfunções utópicas e que a irrealidade era o mundo habitacional da mesma. Felizmente, e por culpa do estímulo do padrinho de praxe, de amigos e do desejo oculto dos meus progenitores, remei sob a alçada dos ventos plácidos e fui aproveitando as oportunidades concedidas a cada passo. Como prefiro os métodos tradicionais, sou somente eu, uma caneta e um papel refastelados à sombra de uma infinidade de momentos estendidos às múltiplas manifestações sentimentais.

Atribuladamente, a serenidade bate à porta. Sossegado, com a companhia do café da noite e num ambiente confinado a um rock puro característico das décadas de ouro, ilumina-me uma ideia aparentemente descabida: peço um papel e uma caneta e, enquanto aguardo pela chegada dos companheiros, rasuro e conjugo palavras que não detém uma sequência lógica, não abordam uma temática palpável e concreta, mas que exprimem o que o interior quer transmitir. Dali, germinam três quadras em pouco mais de meia hora ao som grunge dos Nirvana e dos Pearl Jam e da British Pop de muita qualidade dos Blur: até hoje, considerei uma inspiração momentânea pelas malhas que agregam gerações e confluem os seus espíritos.

Chegado a casa, naquela madrugada cálida, retiro o papel da algibeira, coloco-o em cima da cómoda e adormeço com o candeeiro a incidir o seu fulgor sobre si. Presságio (ou não), recém-acordado, releio tudo o que tinha escrito sob o brilho resistente: após refletir sobre cada vocábulo, sobre cada frase e acerca das distintas subjetividades existentes na interpretação da poesia, floresce em mim a primavera espiritual, o cantarolar dos pássaros e a contemplação dos pomares repletos de árvores de fruto que conferem às trevas um ritmo alucinante que ultrapassa a escuridão que caracteriza o abismo. Talvez sejam assim denotados os versos que redijo.

Hoje é o dia em que continuo a produzir sempre que o tempo e a inspiração roguem a meu favor. A poesia, pé ante pé, delicadamente e sem exercer qualquer tipo de ruído, abriu a caixa da evasão, entrou, acomodou-se devidamente e voltou a fechá-la: o escape à realidade, ao caráter rotineiro e monótono próprio da vida estudantil. Até aqui, descortinei trilhos e paisagens que se encontravam volatizadas, em névoa pura, observei o mundo a olho nu quando pensei precisar de microscópio para compreender determinadas situações, preguei às linhas do meu documento Word o que se destina ao globo e encontrei uma forma simples de sorrir.

A minha obra ainda se movimenta ao ritmo de uma locomotiva dos tempos da Revolução Industrial: a carvão, muito lentamente, a deslizar sobre os carris da juventude e a parar nos apeadeiros da Biosfera, à demanda de palavras como o silêncio e a luz (ou o que há dela).

“Ser poeta é ser mais alto”, dizia Florbela Espanca. A diferença está na capacidade de planar.

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