Bons Sons: o dia 1 do regresso à aldeia
Na apresentação do cartaz da edição deste ano do Bons Sons, há uns meses, ouvimos uma série de relatos de pessoas que vivem e organizam activamente o festival ano após ano. Tem sido assim desde 2006. O Bons Sons, com os seus ritmos e cadências, trouxe um novo sentido de comunidade à aldeia que, com orgulho e sentido de pertença, abre os seus caminhos aos milhares de festivaleiros que já vêem o Bons Sons como o porto de abrigo obrigatório a meio do Verão. O Bons Sons voltou, depois de um interregno pelos motivos que estamos já todos fartos de saber, com algumas iniciativas online para sanar as saudades pelo meio, com algumas alterações, com algumas melhorias, mas acima de tudo com muitas saudades.
O primeiro dia do festival foi um misto de até-que-enfim com um frenesim para experimentar, mais uma vez, a bicicleta estouvada do Hélder (nos já muito tradicionais Jogos do Hélder), visitar os burros de Miranda, encontrar amigos ou para simplesmente conversar no largo da igreja, enquanto se espera por um ou outro concerto.
A tarde estava quente quando chegámos ao palco Zeca Afonso para vermos André Henriques. Com a colina cheia de festivaleiros que sabiamente procuravam a sombra, André Henriques trouxe-nos Cajarana, o seu disco de estreia de 2020. O seu percurso a solo ladeia o já muito conhecido percurso nos Linda Martini, mas não poderia ser mais diferente. Num registo muito mais “calmo”, mas nem por isso conformado, André Henriques traz-nos a inquietude de uma vida adulta, da solidão acompanhada, da vida que há por viver com o peso do que está para trás e a incerteza do que virá. André Henriques é um letrista curioso e intrigante e a interpretação é honesta e límpida. Algures no disco de estreia de André Henriques ouve-se “Ninguém nos cantou a nós/ E eu não sei se sou capaz”. Foi.
A calma desassossegada de André Henriques levou-nos para a frente de palco do Giacometti-Inatel para vermos os Cancro. Foi como passar de um electrocardiograma em repouso para uma prova de esforço. Os Cancro, um trio que tem no seu vocalista um performer que dá bom nome ao punk, trouxeram algumas elevações do sobrolho ao início mas depressa cativaram o público que se ia acotovelando para ver melhor o palco e o crowdsurfing das 19h. A actuação dos Cancro foi grande e catártica. Com temas do seu LP + (cujas receitas reverteram a favor do Instituto Português de Oncologia), os Cancro foram para muitos um bom arranque para este e para os dias que se seguem no festival. Pelo meio, uma cover de “Fala-me de amor” dos Santos e Pecadores com uma ou outra linha de “Se eu fosse um dia o teu olhar” do Pedro Abrunhosa, para nos mostrar que no peito de um punk também bate um coração sensível.
Reposto o ritmo cardíaco, passamos pelo palco António Variações para vermos os Motherflutters, um colectivo pop que nos traz reminiscências das festas de fim de tarde numa ou outra praia e, pouco depois da hora de jantar, o largo da igreja de Cem Soldos encheu-se de sons do mundo e de Portugal, acompanhado de projecções na fachada da igreja. O projecto Omiri, que colabora com Tiago Pereira d’A Música Portuguesa a Gostar dela Própria, pretende homenagear a música portuguesa tradicional, ao reavivá-la e recriá-la. E foi com enorme entusiasmo que os muitos que acorreram ao largo a homenagearam também.
Voltámos ao palco Zeca Afonso para vermos Rita Vian, que é um caso sério de talento na história recente da música portuguesa. A linguagem que Rita Vian usa para transmitir a sua música é fresca e inspiradora. Transpira humildade, não tem pretensões de grandiosidade e é também por isso que nos arrebata. Com avós naturais de Cem Soldos, o concerto de Rita foi, segundo a própria, como regressar a casa. Para nós, os que a vimos ou ouvimos pela primeira vez, os que sabem as letras de cor, os que gritavam “vai, vai Rita”, pareceu-nos que o palco do Zeca Afonso era pequeno para o talento que tem. Se Omiri homenageia e reinventa a história da música portuguesa, Rita Vian está, e perdoem-nos quaisquer possíveis exageros, a escrevê-la.
Um outro ponto alto da noite veio em cima de uma carrinha de caixa aberta que alberga agora o palco Aguardela. José Pinhal Post-Mortem Experience é a melhor homenagem que poderia ser feita não só a José Pinhal, mas aos muitos artistas que vendiam as suas cassetes em feiras e cuja obra morreu com eles. A banda de tributo a José Pinhal poderia resvalar facilmente para algo jocoso. O resultado é uma banda altamente competente, melhor do que alguma vez acompanhou José Pinhal, um vocalista que não pretende ser uma imitação do cantor falecido em inícios dos anos 80, e um público que sabe todas as letras, desde “Tu não apanhes o cabelo” a “Bola de cristal”. Não acreditamos muito em espíritos, mas se José Pinhal, o verdadeiro, soubesse que a sua obra seria assim homenageada, ficaria certamente feliz.
O DJ A Boy named Sue terminou a noite perfeita de um regresso há muito esperado.