“Border”, já não se fazem contos de fadas assim
De vez em quando é assim. Entramos na sala de cinema ou metemos o CD no leitor de DVD (à antiga) e surpreendemo-nos, porque antes desses gestos pouco ou nada sabíamos da obra (nem vimos trailers que contam cada vez mais a história). Ainda bem. Faz falta a surpresa; faz falta “ir às cegas”. Mas mesmo que não fossemos às cegas, Border é daqueles filmes que surgem muito de vez em quando no Cinema e surpreende pela sua simplicidade, desprendimento e… beleza. Entrando em comparações – que para alguns poderão soar despropositadas -, Border é a “monstruosa história de amor” que Shape of Water queria ser, mas que os seus artifícios (e artimanhas) e exageros próprios de uma Hollywood polida e politicamente sonsa e insossa impediram que fosse.
Border é, antes de mais, uma história de amor, de sentimento. Ali Abbasi é daquelas pessoas que ousa estar à chuva, isto é, quer liberdade, e essa liberdade criativa reflecte-se em todos os poros dos seus trabalhos. Depois de Shelley (de Mary Shelley), o fervor pela diferença e pelo impacto na indiferença volta a ser o motor de uma obra de Abbasi. Vencedor da secção Un Certain Regard em Cannes, e nomeado para um Óscar pela Melhor Caracterização, Border foi também o indicado sueco para a lista de Melhor Filme Estrangeiro, acabando por não constar na lista final (justo ou injusto é discussão para outras núpcias).
Border foi escrito pelo próprio Abbasi e Isabella Eklof a partir de uma short story de John Ajvide Lindqvist de uma antologia sua chamada Let The Old Dreams Die. Curiosidade, John Lindqvist é também o autor da História Let The Right One In, que viria dar origem a um filme homónimo que é já de culto. Também nesse imperava a fantasia, mas uma fantasia muito próxima a todos nós, apenas como veículo à explanação da ideia de diferença dos personagens, mas realidade e realismo social em tudo o que estes transmitiam.
Tina (Eva Melander) trabalha num porto sueco, e por alguma razão ela tem a habilidade de “farejar” culpa. Sempre que alguém com culpa ou vergonha de um acto passa por ela, ela consegue cheirá-lo. Usualmente apanha pequenos delitos, mas de quando em quando Tina apanha, por exemplo, alguém bem vestido com um cartão SIM repleto de pornografia. Uma habilidade que é, portanto, também um fardo. Tina vive afastada da sociedade. Tem uma aparência estranha, gosta de caminhar descalça pela floresta e mergulhar nua no lago. Um dia, no seu trabalho, Tina conhece Vore (Eero Milonoff), um estranho e misterioso tripulante com uma aparência facial similar a Tina e que abala a normalidade e banalidade dos seus dias.
Vore sabe coisas sobre a existência de Tina que ela sempre tentou descobrir, mas que o seu pai, demente, sempre lhe omitiu. Vore e Tina vão-se dar a conhecer, a descobrir, e os horizontes de Tina nunca mais serão os mesmos. Border fala-nos sobre uma relação entre dois “ogres”, que nos leva a interrogar quem são os monstros nesta história, muito por culpa de uma história paralela envolvendo Tina em auxílio a uma investigação das autoridades suecas. Quem são os verdadeiros monstros? O normal e convencional humano, capaz de atrocidades morais, ou quem tem um aspecto diferente e socialmente inadaptado nesta bizarra história vinda directamente da Suécia? Border é uma extraordinária forma de nos colocar perante o bizarro, o romance e o julgamento moral.
Um grito de liberdade e de diferença num Cinema tão preso ao convencional. É daqueles rasgos de brilhantismo e originalidade que vamos encontrando, afortunadamente.
Border é um lançamento do Cinema BOLD e plataforma Filmin.