“Cafarnaum”, de Nadine Labaki: a inocência perdida à nascença
A poderosa obra da realizadora libanesa Nadine Labaki, vencedora do Prémio do Júri do Festival de Cannes em 2018, ocupa lugar nas favelas libanesas, numa jornada contra a pobreza e a negligência infantil, conduzida por Zain (Zain Al Rafae). Sendo o próprio um refugiado sírio, melhor do que ninguém consegue exteriorizar a amargura e a indignação perante a impiedade do mundo, assim como o derradeiro valor de compaixão e humanidade.
O título, que significa “caos”, é igualmente uma referência a uma cidade ancestral onde Jesus Cristo se terá estabelecido e encarregado de curar os seus habitantes. De acordo com a Bíblia, a falta de fé e cooperação dos residentes terá impedido Jesus de realizar os seus milagres, condenando a cidade à ruína. Tumultuosa e à beira de uma decadência tanto moral como social, encontra-se Beirute, justificando, assim, a escolha engenhosa da realizadora para o nome da obra. Num registo realista quase documental, seguimos a câmara por entre ruas desgovernadas, cujos habitantes padecem de uma total indiferença, por vezes menosprezo, para com os mais carecidos, ou aqueles que dia após dia se apresentam em cada esquina despojados da sua dignidade humana. Deparamo-nos com uma normalização da miséria, no quotidiano de quem luta por sobreviver, sem tempo para sentir empatia por outro ser humano.
No seio desta paisagem social de penúria e pobreza extrema, é dada uma especial ênfase à desproteção das crianças. Do casamento ao trabalho infantis, a realizadora revela o que é de praxe em alguns locais do mundo. E porque miséria significa lucro, exploração e abuso de poder, não podia faltar a temática do tráfico humano, numa conjuntura de cenário de guerra. A situação dos refugiados não é novidade, mas é actual, sendo crucial quando há forma de lhes atribuir para lá de um rosto, uma história.
Do meio deste inferno surge Zain, confrontando, denunciando, sem nunca se conformar com a tragédia de que é vítima. Após um pequeno vislumbre sobre em que consiste o seu dia a dia, a revolta de Zain leva-o a fugir de casa e da família, sem qualquer plano traçado. Pelo caminho conhece Rahil (Yordanos Shiferaw), uma imigrante etíope, e o seu bebé Jonas, que vivem escondidos das autoridades, sem documentação, sem direito a existir. Acaba novamente sozinho, a cuidar do pequeno Jonas, mais uma vez encurralado num cenário insustentável. Apesar da tenra idade, sabe o que esperar do mundo adulto, consegue sentir a perversão e a maldade. O fim da sua inocência, porém, não o impede de amar e cuidar dos outros, tal como o sofrimento pelo qual passa não o transforma num mártir. Antes pelo contrário, o nosso protagonista é ira, fúria e força. Ao processar os pais para que estes não possam ter mais filhos, afasta-se de vinganças pessoais, demonstrando uma consciência incomum para a sua idade. Os pais por seu turno, num misto de mágoa e revolta, não dão corpo aos vilões da trama, mas sim voz a um problema de fundo numa sociedade que falha para com os seus.
Apesar de a obra retratar uma realidade dramática, suscitando sentimentos de piedade e pesar por parte de quem assiste, não tem a pretensão de o fazer. Não foi idealizada como mais um flagelo do terceiro mundo. É, antes, um grito de revolta perante um círculo vicioso, um protesto a favor de quem vive no limite da precariedade. É um apontar de dedo à audiência que se arroga do direito de chorar lado a lado com quem sofre, mas cuja indiferença recomeça assim que a tela se apaga.