Caminhos da Pedra: um ciclo de (re)conhecimento da região do Médio Tejo
O programa Caminhos divide-se em três ciclos que ocorrem em três alturas do ano, Caminhos do Ferro, em Abril, Caminhos da Água, em Julho e Caminhos da Pedra, em Outubro. Num esforço conjunto de 13 concelhos da região, a premissa é levar iniciativas culturais a locais centrais e recônditos da região, descobrir recantos e celebrar espaços, contar tradições e mostrar terrenos conhecidos pelos olhos de quem vem de fora. Já estivemos nos Caminhos da Água, em Julho, e fomos mais uma vez surpreendidos pelo carinho das pessoas que por ali passaram manifestaram pela região, pelos pormenores e pelos encantos que tantas vezes damos como certos.
E foi assim que o nosso périplo pelos Caminhos da Pedra começou, por uma localidade conhecida, mas que rapidamente se revelou desconhecida. A localidade de Lapas (Torres Novas), nas margens do rio Almonda, recebeu e participou no percurso concebido por Francisco Goulão, intitulado “Andão mortos por sima dos vivos”, nome retirado dos escritos de Luís Montês Matos de 1746, numa referência a uma zona de grutas que se situa por baixo do antigo cemitério da aldeia. Neste percurso, acompanhados pela Banda Filarmónica da SMUT e pelo Rancho Folclórico, ouvimos e lemos lendas e contos, imaginários ou reais, que foram sendo transmitidos pela população das Lapas, quase como se uma história, a História, da localidade se criasse ali.
Seguimos para a performance de Erva Daninha – circo contemporâneo, Savar A.M. na praça 5 de Outubro em Torres Novas, depois de terem apresentado a mesma performance numa sala esgotada em Ourém. O tema é fracturante e não podia ser mais actual – enquanto as empresas de moda têm lucros históricos, algures na Ásia existem fábricas com condições sub-humanas para quem lá trabalha, numa quase escravidão dos tempos modernos e muito longe do luxo ou do consumismo desenfreado das grandes metrópoles. Foi com base no desmoronamento de uma fábrica que produzia peças para a Primark, no Bangladesh, que toda a performance se centrou, esforços hercúleos de pessoas invisíveis para os números, que se querem sempre e cada vez mais elevados. A performance deste colectivo foi irrepreensível, com um simples reparo de o discurso inicial, retirado de um noticiário, ser em inglês, o que poderá ter comprometido a compreensão a algumas pessoas.
Seguimos depois para Fátima, para assistirmos à Marcha das Almas (Projecto de Comunidade Voz à Solta). Na quase meia hora que durou a Marcha das Almas, na rua que conduz ao Santuário em Fátima, no meio de montras repletas de figuras sagradas, um grupo de cerca de 40 pessoas, de todas as idades, uniu-se sob os comandos de Rui Souza, para entoar canções sobre Nestum, Coca-Cola, as agruras das gerações que viveram no concelho de Ourém ou Vila Nova da Barquinha, e percorrer “as ruas das alegrias e dos tormentos, do pão, do vinho, do trabalho no campo, da fome e da abundância, da voz, do grito e do silêncio”. Com um cancioneiro distribuído pelos assistentes, com frases de Agostinho da Silva ou José Mário Branco, acompanhámos as vozes e deliciámo-nos com o empenho, com o entrosamento e com a iniciativa de quem integrou a Marcha. Se houver um exemplo para os Caminhos, para o cerne de toda a iniciativa, será o destas pessoas, que durante 3 dias ensaiaram, divertiram-se, e actuaram, nas ruas de Fátima e de Vila Nova da Barquinha, “por uma causa, com os pés na terra, conscientes do seu próprio tamanho”, conforme declarou Rui Souza.
Ao princípio da noite, fomos até à Meia Via para assistirmos ao concerto de Norberto Lobo, num teatro esgotado.
A cidade de Ourém foi-nos mostrada no percurso concebido pela Burilar. Já tínhamos assistido a um percurso deste colectivo nos Caminhos da Água e voltámos a surpreender-nos com a sensibilidade com que o trabalho é desenvolvido, pretendendo despertar todos os sentidos numa descoberta de espaços públicos conhecidos ou desconhecidos. Este e outros percursos semelhantes deveriam existir em todas as cidades, em todos os recantos, para nos lembrarem da imensidão de coisas que não vemos e não cuidamos.
Terminámos o nosso percurso pelos Caminhos da Pedra com um concerto dos Senza no Sardoal (belíssima vila que merece ser visitada em todas as estações do ano) e com Cristina Branco, com o seu fado/jazz/voz imensa em Ourém.
A iniciativa Caminhos fechou o ciclo para este ano. Abrir-se-á, esperamos, um novo ciclo no próximo. É das iniciativas mais enaltecedoras dos muitos recantos da região que já vimos e, agora numa observação pessoal, sendo nascida e criada em Torres Novas, custa-me não ver mais jovens a participar nas iniciativas, principalmente estes que mais reclamam acerca da ausência de ofertas culturais na zona. Custa-me igualmente ver que a imprensa local não divulga ou acompanha estas mesmas iniciativas, porque é tão importante termos notícias do que está mal como termos notícias sobre o que está bem e é bem feito.