Carlos Paredes, o homem dos mil dedos
Carlos Paredes foi uma das principais figuras na valorização e promoção da guitarra portuguesa, tanto dentro de portas, como para todo o mundo. Fazendo uso e encanto da sua guitarra portuguesa, foi através dos acordes e da poesia sonora que transcendeu os limites materiais e instrumentais e se deu a conhecer a outros músicos, alinhando-se em complemento com esses mesmos. O luso viveu na sua música as fases conturbadas da sociedade nacional, mas nunca permitiu que a poesia se desleixasse na sua obra, marcando-se sempre por pautas com sonoridades etéreas e contextualizadas. Foi nesta imagem que se compôs e se demarcou nos maiores recintos portugueses com as toadas de som mais viajadas pelo íntimo de quem o ouviu e o ouve.
Carlos Paredes nasceu a 16 de fevereiro de 1925 na cidade estudantil de Coimbra. Filho do compositor e guitarrista conimbricense Artur Paredes (desse modo, diferenciando-se do fado lisboeta), recebeu também a influência do seu avô Gonçalo (importante nome do desenvolvimento autónomo do fado de Coimbra) e do seu bisavô António, ambos também instrumentistas. Importa ressalvar que esta tradição fadista remete para a tradição estudantil, que se proliferou pelos locais e que fez nascer o salutar fado de Coimbra. Foi desde cedo que a paixão genética se fez sentir na sua mente, passando para o seu coração e anunciando-se nas suas mãos, mesmo após ter passado a viver em Lisboa com nove anos, sem nunca desconsiderar a preferência da mãe pelo piano. Assim, e enquanto frequentava o Liceu Passos Manuel, começou a receber formação, tanto no piano, como no violino, através de duas professoras da Academia de Amadores de Música.
A mudança da família para Lisboa deveu-se à transferência de posto de trabalho do seu pai no Banco Nacional Ultramarino. Enquanto tinha a formação escolar e académica, Carlos não prescindia dos ensinamentos do seu pai quanto à guitarra, vindo a dedicar-se a esta exclusivamente pouco depois. Apesar das influências que havia recebido dos seus parentes, sentiu-se que o seu registo era distinto e que caminhava numa direção diferente ao experimentar e ao aliar essas novas sensações ao seu estilo. Com isto, a genética coimbrã não iria restringir a personalidade artística do jovem, mas abrir-lhe os horizontes para as suas próprias tendências.
Exibindo os seus naturais dotes musicais, Artur Paredes conseguiu desenvolver o seu programa pessoal na Emissora Nacional, antecessora da Radiodifusão Portuguesa. De forma a promover as virtudes do seu filho, tornou-o num colaborador regular nesse programa a partir de 1949, logo após o fim dos estudos secundários de Carlos. Não tendo este concluído o Curso Industrial do Instituto Superior Técnico, não se demoveu dos estudos que o moviam e inscreveu-se em aulas de canto da Juventude Musical Portugal. Os seus custos eram suportados pelo trabalho que conseguiu no Hospital de São José, onde era funcionário administrativo. Entretanto, em 1957, gravou o seu primeiro disco, homónimo do seu nome.
No entanto, nunca se tornou incólume às dissidências e circunstâncias políticas de então e, como forte contestatário ao Estado Novo, foi preso em 1958 pela PIDE por ser militante do Partido Comunista Português. Libertado no ano seguinte, viu-se exonerado das suas funções no hospital e viria a tomar conhecimento que foi vítima de uma denúncia de um colega de trabalho, apesar de o ter perdoado. Uma peculiaridade interessante que dominou o seu tempo enquanto recluso foi o facto de que deambulava de cela em cela a fingir tocar música, chegando os seus companheiros a pensar que ele endoidecera. Na verdade, Paredes estava a compor canções na sua música, algumas delas que viria a passar para trabalhos futuros da sua autoria.
Embora pese estas atribulações, viria a ser convidado pelo cineasta português Paulo Rocha para compor a banda sonora do seu filme de 1963 “Os Verdes Anos“, um dos principais num estilo que seria assumido como o Novo Cinema. A inspiração do músico para este trabalho prendeu-se precisamente com o retrato dos diversos jovens que tentavam a sua sorte na capital portuguesa, louvando o significado humano do projeto do realizador. A sua simpatia dirigia-se para as pessoas mais simples e para as mais marginalizadas, visualizando nestas uma sinceridade e uma pureza que o comovia. Desde então, tornou-se um colaborador assíduo com diferentes realizadores portugueses na utilização de música sua para os filmes destes cineastas, tais como “As pinturas do meu irmão Júlio” (1965), de Manoel de Oliveira, ou “Crónica do esforço perdido” (1966) de António de Macedo, entre outros. Para além destas sinergias, atuou com fadistas, como Adriano Correia de Oliveira ou Carlos do Carmo, e com o contrabaixista norte-americano Charlie Haden.
Em 1967, gravaria e lançaria o seu primeiro LP de título “Guitarra Portuguesa“, tendo depois produzido “Movimento Perpétuo” em 1971. Três anos depois, e após a Revolução dos Cravos, o músico, à imagem dos demais presos políticos, seria visto como um herói, embora recusasse essa denominação. Com esta mudança de regime, foi reintegrado no Hospital de São José, mas passou a fazer digressões musicais e culturais e a participar em diversos eventos políticos. Apesar da retumbância da sua carreira musical, nunca abdicou do seu trabalho como arquivista de radiografias. Desde então, e até a 2004, ano da sua morte (faleceu a 23 de julho), foram feitas diferentes compilações de gravações do músico, estando até a sua obra completa reunida numa caixa de oito CDs.
A devoção pela sua guitarra era tanta que, numa ocasião em que a perdeu numa viagem de avião, chegou a pensar suicidar-se. Em 1992, tornou-se Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, atribuída pelo seu mérito artístico. A doença que o viria a vitimar em 2004 surgiu somente um ano depois de ter sido condecorado, impossibilitando-o de tocar durante todo esse período. Essa patologia, de nome mielopatia, afetou-lhe o sistema nervoso central e só o largaria no dia da sua morte, partindo na Fundação Lar Nossa Senhora da Saúde, em Lisboa, e sendo decretado luto nacional.
Quanto aos álbuns da sua autoria, o primeiro LP foi, conforme citado acima, “Guitarra Portuguesa”. Este trabalho contou com o acompanhamento do instrumentista Fernando Alvim, que viria a colaborar também com António Chaínho. Registado no estúdio de Paços de Arcos da distribuidora Valentim de Carvalho, este álbum destaca-se pelo distanciamento demarcado da tradição formalista coimbrã. A exploração sempre foi uma das principais motivações musicais de Paredes e, como tal, a extensão desta composição assim o mostra. Com 11 faixas, apresenta-se uma experiência auditiva na qual todo o fulgor instrumental acompanha a miniatura melódica que a guitarra permite e que lhe viria a valer a alcunha de “Mestre” e de “O homem dos mil dedos”.
De seguida, nasceu “Movimento Perpétuo”. Mais uma aliança idílica entre as diferentes músicas, assistindo-se a uma complementaridade delicada e perfecionista. Apesar desse requinte auditivo e do adorno com o qual preenche a sua música, nota-se que o português não se prende a cada faixa e mostra-se económico através da facilidade de transição musical. Este é o álbum que permite solidificar o estatuto de Paredes no contexto musical e que lhe concede a oportunidade de se afirmar como um dos rostos da produção instrumental lusa.
No pecúlio do artista, estão também “Concerto em Frankfurt” (1983), “Espelho de Sons” (1987), “Asas Sobre o Mundo” (1989), “O Melhor dos Melhores” (1994), “Na Corrente” (1996), este um disco de inéditos, e “Canção para Titi: Os inéditos 1993” (2000).
Carlos Paredes tornou-se um dos principais nomes da cultura e da música portuguesas, sendo talvez o mais preponderante guitarrista de origem lusa. Imbuindo-se na sua arguta genética para a música, deu asas e forma a diversas criações musicais, indo para além da tradição coimbrã com a qual cresceu. Para além de preencher o seu país com o seu imenso talento, também se tornou conotado fora de portas e colaborou com diferentes áreas artísticas, tais como a dança e o teatro. Com uma afinação subtilmente fervorosa e com uma harmonia rendilhada de melodias a arrastarem-se com suavidade dentro dos ouvidos, Carlos Paredes proporcionou um êxtase íntimo àquilo que os sentidos conseguem captar. Uma sensação decorosa ao coração que, por fim, se deixa relaxar após tanto tempo em polvorosa.
Quando eu morrer, morre a guitarra também.
O meu pai dizia que, quando morresse, queria que lhe partissem a guitarra e a enterrassem com ele.
Eu desejaria fazer o mesmo. Se eu tiver de morrer.