Carta a Graça Freitas
Não nos conhecemos. Na verdade, não me parece sequer que nos tenhamos cruzado em alguma circunstância. Mas tenho-a visto (eu e certamente a larga maioria dos portugueses) todos os dias a dar a cara pela evolução da pandemia no nosso país.
Posso imaginar a pressão diária, mas apenas imaginar. Sem dúvida que se nota o cansaço, está mais magra, impossível não o notar. Dá-me ideia, admito desde já a especulação, que se irrita com algumas das críticas que lhe têm sido feitas, pressinto-lhe o enfado.
É exatamente por isso que lhe escrevo.
Quero dizer-lhe que, face às circunstâncias, está a correr bem. Não ligue mais do que a conta à cólera da maledicência e à ignorância atrevida. Nunca se esqueça de que Portugal é o país de onde saíram os navegadores, mas também é o país em que ficaram os velhos do Restelo a dizer mal dos navegadores.
Imagino que a irrite muito.
De repente, a sua história e percurso não servem para nada.
Todo o trabalho de dedicação à saúde pública; a revolução que fez no sistema de vacinação português; as centenas de médicos a quem influenciou com as suas aulas na Faculdade de Medicina; o trabalho de sapa que permitiu que o seu antecessor brilhasse; os elogios internacionais pelo seu contributo nas reuniões do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças.
Não, Dra. Graça Freitas, esqueça.
Para muitos comentadores, autarcas ou agitadores de redes sociais isso não interessa nada. De repente, são todos especialistas no que a senhora estuda há quarenta anos. São imunologistas, matemáticos, físicos e tudo o resto de que se faz o cardápio do grupo de trabalho que lidera.
Errou várias vezes. Teve de alterar previsões. Disse uma coisa nuns dias e teve de se desdizer noutros. Imprudentemente falou demasiado cedo de situações que acabaram por não se concretizar – atenção que em política os murros na mesa nunca se anunciam, dão-se simplesmente. Por vezes falou com demasiada certeza, o que nunca é avisado.
Mas pergunto-me se poderia ser de outra maneira? Existia alguém que pudesse antecipar o que iria acontecer antes de acontecer? Existiu algum precedente que pudesse ajudar a antecipar? Sei que não. E isso obrigou a navegar à vista, a corrigir em mar alto, a tentar que a viagem prosseguisse com o mínimo de danos.
Ao ouvir determinadas pessoas a gritarem-lhe ao ouvido imagino o que seria se não estivesse a cumprir os objetivos. Imagino o que seria se Portugal tivesse os mortos (em proporção) de Espanha, Itália, Inglaterra ou França. Imagino o que seria se Portugal não fosse elogiado pelo New York Times, se o El País não nos definisse como os “suecos do sul” ou se tantos investigadores não estivessem a elogiar-nos pelo trabalho feito nesta primeira fase da pandemia. O que seria, Graça? Consegue imaginar?
Sei que gosta de cuidar das suas orquídeas, li algures. Aposto que também gostará de Confúcio que tratava as orquídeas com paixão e zelo. Gabava-lhes a beleza e a delicadeza. E foi Confúcio quem, muito a propósito, nos deixou a frase definitiva: “O que sabemos, saber que o sabemos. Aquilo que não sabemos, saber que não o sabemos: eis o verdadeiro saber.