Charlot, o palhaço que levou porrada de todos e que nunca teve ódio a ninguém 

por Ana Monteiro Fernandes,    27 Dezembro, 2022
Charlot, o palhaço que levou porrada de todos e que nunca teve ódio a ninguém 
Fotografia de divulgação do filme “The Kid” (1921) com Charlie Chaplin e Jackie Coogan – Wikimedia Commons
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Com sapatos claramente acima do número indicado, roupa gasta, suja e rota, mas com ar distinto com a sua bengalinha e chapéu de coco, muitas poucas personagens de cinema conseguiram desenvolver e retratar o lado mais negro da sociedade como Charlot, de Charlie Chaplin. O tragicómico desta ideia, a grande ironia, é essa crítica social ser-nos devolvida através de filmes supostamente de comédia, desenvolvidos para levar o riso ao extremo, e pelo protótipo da ideia de palhaço pobre. A magia, a tristeza e a intemporalidade de Charlot é essa — um palhaço pobre que, apenas por existir, transforma-se logo numa das críticas mais certeiras e intemporais sobre o que o ser humano é e pode ser, no seu cômputo social.

Todos nós carregamos um lado vencido ou um lado inadaptado. Charlot dá-nos a mão nessa caminhada, por isso, será sempre actual. É o anti-herói por excelência que modificaria o cinema e instituiria um marco. Fellini, com o documentário “Os Palhaços”, e Benigni são, apenas, dois realizadores, dentro de um vasto universo, que têm e ainda terão esta personagem como referência. Sim, estamos a falar de cinema mudo, e Charlot devia muito ao humor físico que, em moldes diferentes, é certo, talvez só tenha comparação, a nível de repercussão mundial, mais contemporaneamente, a “Mister Bean”. Não obstante, esse mesmo humor físico (hoje em dia já em desuso) criado de raiz e tão característico chegou a influenciar não só o cinema, mas as artes no geral, desde a circense até à dança — Michael Jackson que o diga — como também levou para outro patamar a dicotomia de palhaço pobre, palhaço rico presente no imaginário de todos.

A esta personagem bastava só ocupar um espaço e ser apenas ele para incomodar. Esse era o seu crime. Como Raul Solnado chegou a dizer para um documentário sobre Charlie Chaplin disponível na RTP Arquivos, “levou porrada de toda a gente e nunca teve ódio de ninguém”. Conheceu o lado pior do mundo, mas deu-lhe o seu toque de liberdade e bondade dando expressão máxima à mítica frase do filme “Monsieur Verdoux”, “Barba Azul” em português, “It’s a blundering world and a very sad one, yet a little kindness can make it beautiful”. Traduzindo, é qualquer coisa como isto: “é um mundo torpe e muito triste, no entanto, um pouco de bondade pode torná-lo belo.” Esta é a expressão máxima do que poesia significa, pelo menos do ponto de vista benigniano e chapliano — a liberdade acima do ego. Viver a vida, não viver, apenas, em função da ideia que se tem, socialmente, de uma vida boa, porque não deixa de ser, também, uma outra ilusão romântica tal como a “green light”, a “luz verde”, de Fitzgerald. E atenção, ser-se palhaço, como Charlot o foi, não significa viver na fantasia e no mundo cândido infantil, significa dar-nos a realidade dura e crua. Por isso é que tudo em Charlot acaba por ser tão irónico. É um palhaço pobre que, ao fazer rir, nos devolve a miséria e a crítica social.

Há algo em Charlot que não quebra porque é incapaz de ceder à prisão do quotidiano, como tão bem o exemplificou em “Os Tempos Modernos”. Alguém que vive engrenado no automatismo das malhas da produção em série ao estilo fordista, enlouquece, mas acaba, invariavelmente, por viver no lado falhado da sociedade. É como se Charlot fosse um insecto incómodo por não conseguir seguir as regras sociais tais como elas se apresentam e não representar a ideia de sucesso tão em voga no início do século XX — ninguém sabe o que fazer, verdadeiramente, com isso. Como consequência, vive, sempre, no lado proscrito da ralé, sempre a tentar e a falhar a vida, mas sem nunca abdicar de quem é e da sua liberdade. Vê-se envolvido, sem querer, em lutas e o seu lado desastrado faz com que se irritem com ele. É despedido uma e outra vez e, sem surpresa, é sempre olhado de alto, com o seu oponente de sobrolho levantado e ar de superioridade.

Por essa mesma razão representa, essencialmente, a recordação de como a comédia e o lado mais sombrio do social podem andar de mãos dadas. Trazendo à liça a frase de Dante, “não há maior dor do que a de recordarmos dos dias felizes quando estamos na miséria.” Aqui percebemos como Charlot, além do riso, pode criar no espectador o sentimento oposto. A expressão máxima desse desconforto vê-se, por exemplo, quando no filme “O Garoto”, Charlot e o seu filho adoptivo se vêem obrigados a separarem-se, conseguindo criar no espectador um desconforto total que puxa o lado cómico para segundo plano.

https://www.youtube.com/watch?v=q1U0eKOOwsQ

Mas quem era este Charlot? Como Raul Solnado já referiu, “levou porrada de toda a gente e nunca teve ódio de ninguém”. Antes de mais, um desajeitado que não conseguia manter emprego, sem recursos e sem dinheiro, mas capaz de ajudar da forma mais desinteressada e humana possível, tal como se vê em “Luzes da Cidade” – nem que para isso tenha de dar o corpo ao manifesto, ir à guerra, dar e levar. Representa uma esperteza típica de quem não tem recursos mas, ao mesmo tempo, a dignidade, a bondade e a candura de não ter mendo de levar uma tareia, só para ajudar quem precisa, como acontece neste mesmo filme.

Não pode, contudo, ser visto como um coitado, pelo contrário. Para entender este vagabundo, há que compreender que tudo nele funciona como uma fuga, como uma antítese do ego que a sociedade construiu para si. Charlot nasceu para isso mesmo e é essa a razão pela qual incomoda. Um vagabundo não se preocupa com a imagem e é a desconstrução da “persona” em si. Num mundo catalogado pela imagem do que se diz e do que se deixa de dizer, em que tudo parece que é feito para a exacerbação do ego, em que se tem, obrigatoriamente, de se deixar uma impressão sobre algo, é difícil enquadrar um lado desajeitado e ter paciência para ele. É difícil a visão de um lado andrajoso e deixá-lo estar. Poder-se-á dizer que toda a vida equilibrada precisa de um certo tipo de cinismo. Como é que, então, alguém pode escolher o caminho contrário?

A primeira metade do século XX e o percurso histórico entre as duas guerras mundiais, em plena 2ª Revolução Industrial, marcou o começo do trabalho automatizado das fábricas. O liberalismo e o american dream do “self made man” já faziam escola nos Estados Unidos. Se, por um lado, Jay Gatsby devolvia-nos a ilusão liberal, personificada pela tal luz verde que nunca se alcança, na verdade, Charlot funcionava como a outra face da moeda, o lado social e real vivido por alguém que tem a dose de travessura e arrogância necessárias para viver no lado contrário dessa ilusão e prisão. Os filmes de Charlie Chaplin sempre foram demarcados por esta crítica, desde “Tempos Modernos”, passando pelo “Grande Ditador”.

O realizador inglês é responsável por uma extensa filmografia, ao todo realizou 80 filmes, mas há três produções que foram marcantes: “Tempos Modernos”, justamente, “O Grande Ditador” e “O Barba Azul”. André Bazin, um crítico e teórico do cinema da primeira metade do século XX, defende no seu livro, “Charlie Chaplin”, que “Tempos Modernos” é nada menos do que um filme de tese”. Faz esta afirmação porque, para o teórico, “Chaplin demonstra claramente estar ao lado do homem e contra a sociedade e as suas máquinas”. Não se trata de um filme falado mas acaba por ser uma transição para os filmes sonoros, uma vez que o próprio Charlot acaba por cantar a sua imortalizada “The Nonsense Song”, em que são debitadas um conjunto de palavras que parecem não ter sentido algum.

Lançado em 1936, enceta uma crítica clara aos métodos de produção em massa herdados pela era do fordismo e do taylorismo. O processo de produção em série obrigava os trabalhadores a produzirem de forma quase mecânica, sem olharem a horários e sem pensarem no que faziam. Os casos de loucura proliferavam naquela época e a taxa de desemprego era alarmante, devido à crise económica mundial dos anos 30.

Como já referido, a época de Charlot decorria-se em plena 2ª Revolução Industrial. As máquinas, a sensação destas controlarem a vida do homem, e a sensação do homem ter de se adaptar às máquinas ou à sua prisão, eram uma constante nos seus filmes — a visão do homem em oposição às coisas, o seu esforço pelo entendimento da sua mecânica, a luta entre o humano e a máquina.

Sobre esta mesma noção, Byung-Chul Han acabou por escrever no livro “Não-Coisas” que “Charlie Chaplin, nos seus primeiros filmes, está irremediavelmente à mercê da perfídia das coisas. Estas voam à sua volta e atravessam-se-lhe no caminho. O cómico das situações provém do duelo com as coisas. Fora do seu contexto funcional, adquirem uma vida própria. É revelada uma anarquia das coisas. No filme “Charlot Prestamista”, por exemplo, Chaplin, como empregado de uma casa de penhores, examina um despertador como se fosse um corpo, com um estetoscópio e um martelo, e abre-o com uma broca manual e um abre-latas. As partes mecânicas do despertador desmontado emancipam-se e põem-se em movimento, como se estivessem vivas”.

Mas voltando ao filme “Tempos Modernos, no livro “Charles Chaplin: o seu destino e a sua obra”, o crítico de cinema Pierre Leprohon afirma que “a impressão mais forte que conservamos é o optimismo comunicativo que se liberta progressivamente em “Tempos Modernos” e uma energia, uma força, um dinamismo que não tínhamos encontrado ainda em nenhuma obra de Chaplin.” Mas vai mais longe e diz, também, que a personagem “Charlot”, em filmes anteriores tido como alguém que escapa ao socialmente correcto, aparece neste filme enquadrado dentro do sistema da sociedade contemporânea. Sobre este facto, Leprohon afirma na sua obra: “o eterno insubmisso tornou-se um dos elos da engrenagem que é preciso seguir com docilidade de escravo”. Completa dizendo que “Charlot está a mais num universo tão bem organizado e abandona o lugar, obcecado pelos gestos automáticos que executa de manhã à noite.”

Em “Tempos Modernos”, o protagonista é operário de uma fábrica, mas o automatismo das suas funções e o excesso de trabalho levam-no à loucura. Foge da fábrica, acaba por ser preso, mas, quando sai, conhece uma rapariga sem posses. A rapariga vive nas ruas e não tem lugar para onde ir, tal como Charlot, desempregado e sem dinheiro. Os dois apaixonam-se e, tal como Leprohon escreveu, “ tentarão em vão uma felicidade modesta”. Juntos, tentaram empregar-se em diversos locais, mas acabarão sempre por ser despedidos. Não têm alternativa senão aceitar a sua pobreza e viver à margem da sociedade.

A crítica acabou por dar um sentido político à temática do filme. Após a sua estreia em Nova Iorque, foram vários os jornalistas que identificaram em Chaplin uma tendência política próxima do comunismo. Como consequência, “Tempos Modernos” foi interdito na Alemanha e em Itália.

Sobre este assunto, Leprohon relembrou na sua obra que Chaplin “nunca se colocou num plano político, mas sempre num plano humano. O seu ponto de vista seria reprovado tanto pelos industriais como pelos comunistas.” Acrescentou que “o que Chaplin defende em Tempos Modernos é a dignidade do homem.”

Já em “O Grande Ditador”, o primeiro filme declaradamente sonoro de Charlie Chaplin, em 1940, um ano depois do começo da Segunda Guerra Mundial, o realizador inglês pretendeu criticar o nazismo e o fascismo, através de uma sátira dirigida a Hitler e a Mussolini. Genericamente, Charlot é um barbeiro judeu da Tomânia que pretende escapar aos campos de concentração. Tomânia, claro está, trata-se de um país fictício que pretende retratar a Alemanha nazi.

O filme só foi lançado em 1940, mas o guião começou a ser escrito em 1939. Como esse foi o ano que marcou o início da Segunda Guerra Mundial, Chaplin teve de interromper a produção do filme — decidiu retomá-la, no entanto, mais tarde. A recepção crítica a “ O Grande Ditador” foi bastante negativa. Leprohon relembra que “nos Estados Unidos foi bastante fria e os resultados financeiros deploráveis.” Foram vários os países que recusaram “O Grande Ditador”, com medo de possíveis represálias: entre esses países, constam, por exemplo, a Argentina. O filme esteve proibido em todos os países europeus sob o jugo alemão. Foi apenas cinco anos mais tarde que França e toda a Europa puderam assistir a esta produção.

Este foi o primeiro filme falado de Chaplin. Depois do realizador e actor ter tentado resistir ao sonoro, o seu grande pesadelo, acaba por ceder. No livro “Charles Chaplin: a vida, o mito, os filmes”, de José Mato Cruz, afirma-se que “a principal preocupação de Chaplin é a adesão inevitável ao sonoro, a que já se comprometera, e sobre o qual observa, contrafeito: “um filme falado, por muito bom que ele fosse, nunca poderia ultrapassar o valor artístico da minha pantomina. Pensara em vozes diferentes para Charlot, se ele devia exprimir-se por monossílabos, ou simplesmente falar por entre os dentes”.

Mais uma vez, tal como acontecera com “Tempos Modernos”, a América tentou associar Chaplin ao comunismo. Sobre este aspecto, Chaplin defende-se dizendo: “Não sou comunista. Não pertenço a nenhum partido político e nunca votei na minha vida. A política não me interessa (…) Não gosto de ditadores, sob nenhum aspecto, e não gostaria de ver um ditador no país em que vivo.”

Em 1947, é lançado “O Barba Azul”, um filme cuja crítica recai no capitalismo e no militarismo. Charlot já não é mais alguém simpático que anseia pelo lado romântico da vida. “O Barba Azul”, nesse sentido, acaba por ser um anti-Charlot. Desta vez, é pela acidez e crueza que acaba por expor a busca desenfreada por dinheiro, a sede do capital e a ilusão da falsidade do homem que se faz a si próprio. Uma vez mais, o filme foi mal recebido. Pierre Leprohon relembra que “não atingiu sequer duas mil exibições nos Estados Unidos. Este falhanço não deve ter surpreendido totalmente o autor, mas ameaçava perigosamente a sua situação financeira e o futuro da sua carreira.”

O crítico de cinema acrescenta ainda que “em Inglaterra, em França mesmo, o carácter insólito da obra desconcertou numerosos admiradores de Chaplin. Todavia, o interesse que lhe dedicaram compensou um pouco a cabala americana.” No mesmo ano do lançamento de “O Barba Azul”, começam a surgir pedidos a exigir a deportação de Chaplin. Foi o caso do deputado democrata do Mississipi, John Rankin, alegando que “a vida do actor em Hollywood era nociva à moralidade americana.”

A Comissão das Actividades Anti-americanas, na altura tendo como presidente Parnel Thomas, começa a estar no encalço do realizador. Como consequência, Charlie Chaplin é chamado a depor. O realizador recusou e enviou um telegrama a dizer o seguinte: “Sou um pacifista.”

Por todas estas acusações, Charlie Chaplin abandona os Estados Unidos em 1952. O actor estava em Inglaterra para a estreia do filme “Luzes da Ribalta”. Quando soube da sua viagem, John Edgar Hoover, director do FBI, lembrado pela sua demanda contra pessoas de ideologia de esquerda, principalmente artistas, anulou o visto de Chaplin, impedindo o seu regresso aos Estados Unidos. Quando mais tarde teve a oportunidade de voltar ao país, escolheu viver na Europa, mais propriamente em Vevey, Suíça. Foi o local onde viveu até à data da sua morte.

Calculistas dirão que é utópico viver sem qualquer tipo de cinismo. Românticos dirão que o calculismo social enceta em si mesmo uma utopia que também nunca se alcança, tal como aquela luz verde que sempre estará longe. A estrada no final dos “Tempos Modernos” significa, por isso mesmo, uma escolha e uma afirmação perante um estilo de vida, mais do que amor melado. E essa escolha talvez seja o maior statement que existe.

Há uma estrada a percorrer e uma incógnita do que aquela estrada trará. Duas pessoas de mãos dadas caminham sem certezas de nada, apenas com a confiança de que se têm uma à outra. É difícil, por isso mesmo, ser-se um vagabundo e tal pode, até, causar dor. Nunca, ninguém, chega a ser um Charlot por completo, tal como o próprio Charlie Chaplin, o autor que lhe deu vida, o foi. Charlot funcionou apenas como uma projecção do que foi o início de vida de Charlie Chaplin, sem dinheiro e múltiplas dificuldades, no fim de uma era vitoriana demarcada por imensas assimetrias.

Charlot seria, portanto, um Charlie Chaplin adolescente à solta, ou uma forma do realizador inglês transpor para as telas a realidade social do seu início, quando a sua mãe se encontrava no manicómio e o próprio e o seu irmão tinham de subsistir por si. Mas, se há uma vida que nos empurra mais um bocadinho para o cinismo e convenção social necessárias à sobrevivência, então haja alguém que nos recorde que “vagabundos” também são gente e precisam de liberdade. Talvez aquele a quem se chama ingénuo e torpe, seja aquele que mais bem conhece a realidade, porque aponta o dedo à forma como as pessoas nem estão apaixonadas por si próprias, de facto, mas pela ideia que têm de si próprias. Tudo é sempre uma outra coisa.

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