Chester e o peso do mundo

por Francisco Geraldes,    26 Março, 2025
Chester e o peso do mundo

Devia ter os meus 11 anos quando, em jeito de presente de aniversário, os pais da Teresa, grande amiga de infância me ofereceram, ainda que a pedido meu, o “Live in Texas”, dos Linkin Park. Ainda hoje o tenho no meu quarto. Nessa altura, estava mais interessado na descoberta do rock, nos gritos do Chester, na rap do Shinoda e em arranjar uma lógica na minha cabeça que justificasse a constante pergunta “como é que ele não fica sem voz depois disto?”.

Enfim, indagações fruto dos tempos e da curiosidade de um rapaz curioso e com um espírito de descobridor nato. Uma coisa com muita vida, pois sempre gostei de puxar novelos.

Cedo percebi que Linkin Park nunca seria uma banda passageira na minha vida. Tinha a certeza que “Numb”, “In the end” ou “Somewhere I belong” fariam parte do meu repertório musical durante os mais variados estados de alma.


Só que, ainda assim, eu nunca compreendi as letras. Com 11 anos, jamais as poderia compreender. Ainda que a esquematização delas fizesse sentido, já que eu percebia relativamente bem inglês, eu nunca as poderia perceber. O que era “I kept everything inside / And even though I tried / It all fell apart”? Ou “(nothing to lose) / just stuck, hollow and alone / and the fault is my own”?

Nunca tinha tido o momento em que tudo ao meu redor se suspende e a incredulidade toma o lugar do mundo. O sentimento de suspense, trágico e absoluto, como acontece em “Incendies” com a tatuagem no pé, ou em “Seven” aquando da compreensão do que está na caixa, ainda que David Mills (Brad Pitt) ainda não a tivesse, nesse momento, aberto. O expoente máximo da realização de algo que até então não mais era do que superfície.

Percebi, então, que crescer neste mundo, — neste meu mundo que é o que se passa dentro das quatro paredes da minha cabeça — é compreender Linkin Park e as suas letras, mas, principalmente, é sentir o peso do mundo do Chester. Não só senti-lo, mas, no meu caso, existir no mesmo espaço superior e quimérico.

A 20 de Março, dia de aniversário do Chester, fui, como todos os anos, assaltado por uma tristeza absoluta. Um lugar sem fim, cheio de pedras humilhadas pela chuva de um inverno cortante. Os confins do mundo já várias vezes revisitados, não mais seja por ser uma data que se repete todos os anos. Lugar que, em Crawling, “I can’t seem to find myself again / the walls are closing in / I felt this way before / so insecure “, mas eu estou sentado a agarrar os joelhos, porque, “this wounds they will not heal.”

Um vínculo com o cantor que não pode ser quebrado. É um labirinto único, pessoal e intransmissível este, na maioria das vezes inexplicável. Talvez haja uma combinação matemática para juntar as palavras para descodificar a maneira de as expressar. Ele encontrou-o na música, talvez. E mesmo assim não foi suficiente. Expressar este assombro absoluto e que ceifa tudo num ápice, que é a saúde mental, ou a falta dela. A impossibilidade de explicar o que se sente, como se algo tivesse de ser expelido de dentro, mas sem um caminho para o fazer. Em “Heavy”, fica, mais uma vez, demonstrado o tal peso do mundo: “Im holding on / Why is everything so heavy? / I’m holding on / Just so much more than I can carry”.

Fruto das circunstâncias da vida, também eu aprendi a guardar tudo. Também algo em mim “pulls beneath the surface / consuming, confusing /“, também como em “Crawling”. Daí a sensação de proximidade tão grande com ele.

Numa das suas últimas entrevistas, creio, Chester afirma que não pode estar sozinho na sua cabeça, que é um lugar perigoso, só encontrando possibilidade de expansão de si mesmo na vida em comunhão com os outros. No ato de ser pai, no ato de ser amigo, no ato de ser parte da banda, e não no idealismo de, sem ato, sê-lo na mesma. É muito complicado tentar entender este jogo, pois é enormemente confuso.

Da mesma maneira que a depressão te subtrai tudo o que te permite expandir — o fazer, muito mais do que o ser, como ele diz —, torna-se nesse mesmo de única possibilidade de existência. É, talvez, um processo altamente dialético. Assume as contradições em si mesmo de ser, simultaneamente, o crescimento e movimento entre o que o mundo não pode mais suportar contra a imensidão de alegria que o momento reúne.

É absolutamente devastador pensar que estas palavras, na entrevista, já anunciavam o trágico, ainda que sem data precisa, fim desta pessoa. Se ao menos o entrevistador — ao invés de se rir perante afirmações que não mais eram do que um pedido de socorro, pedido esse que mesmo assim podia não ter socorro — pudesse ter realmente compreendido “Should’ve stayed, were the signs I ignored / can I help you not to hurt anymore?, dois dos primeiros versos de “One More Light”. Talvez ele (entrevistador) não mais seja, nestes pequenos segundos, o espelho do mundo. Individualizado, em espécie de representação do todos contra todos. De não compreensão do outro mais do que a superfície que as palavras podem aparentar. A falta de empatia típica deste estado de coisas, talvez seja a própria personificação do sistema capitalista que enfrenta a saúde mental como algo risível, desvalorizando o mundo do outro. Um mundo que “who cares if one more light goes out / in a sky of a million stars /“ e “who cares if someone’s time runs out“, também de “One More Light”. Se ao menos o entrevistador pudesse ter dito que ele mesmo sim queria saber e ajudar, como Chester escreve no final do refrão: “Well, I do”.

No filme “V for Vendetta”, há uma cena em que Eve Hammond (interpretada por Nathalie Portman) está na sua cela, após dias e dias de tortura, lendo correspondência escrita em papel higiénico por uma ex prisioneira. O único motivo que a permite continuar é persistir perante tamanha violência. A carta termina com algo muito similar a “mesmo que eu não te conheça, que nunca te encontre, que nunca me ria contigo, que nunca chore contigo ou te beije, eu amo-te. Com todo o meu coração, eu amo-te.” É um momento marcante e que transforma por completo o caminho do filme.

Ainda que, aparentemente nada tenha que ver com Chester, depois de tudo o que ele escreveu, viveu e sentiu, vejo-me obrigado a sentir que gostaria que ele, algures no tempo, pudesse ter recebido uma carta minha com conteúdo similar. Algo que refletisse na perfeição o sentimento de compreensão e entendimento profundos quanto à sua forma de enfrentar a sua realidade. Uma expressão máxima de se lhe poder dizer: “Eu compreendo.”

A conexão entre as diferentes formas artísticas permite encontrar estes caminhos que se fundem uns nos outros, que são e não são o mesmo, ao mesmo tempo, a mesma coisa.

De repente, sou eu a escrever ao Chester, palavra por palavra, o final desta carta. Talvez seja a minha maneira de dizer “Well, I do”, ainda que, mesmo se fosse vivo, não o pudesse saber.

Dito isto, vou continuar a tentar descodificar o mundo e o seu peso. Da maneira que possa e me permita, com o conforto das letras do Chester e da partilha de estados de alma, que são e não são ao mesmo tempo. O que daí surgirá, saberemos mais tarde. Até lá, seguirei a revisitar e a procurar conforto em “Hybrid Theory” e “Meteora”.

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