Childish Gambino: o verão à porta fechada
Ansiávamos este regresso antes de saber que realmente precisávamos dele. E assim chega 3.15.20, o quarto disco de Childish Gambino, que nos leva a mergulhar em tempos de estar em casa. Ao dia “sabe-se lá” de quarentena, já batemos com a cabeça na parede, mas este disco faz-nos projetar o verão nas paredes da nossa sala.
É, no mínimo, um disco que suscita curiosidade pelo nome, pela espontaneidade com que foi lançado e até pela capa, que é totalmente branca. Foi originalmente lançado a 15 de março de uma forma pouco convencional — um site onde o disco estava em streaming contínuo e sem haver divisões de músicas. Cada tema do álbum — exceto “Algorhythm” e “Time” — representa o minuto a que começa. Já a hora que passamos a navegar neste disco é deliciosa. Tudo parece ter congelado até sairmos da bolha que é a mente de Donald Glover, apesar de nunca se esperar menos que isso.
3.15.20 deve ser a experiência sensorial mais profunda em tempos de isolamento social. Muitos talentos tem Donald Glover, no entanto este álbum é especialmente único em termos de storytelling. Talvez por isso tenha sido apresentado sob a forma de stream contínuo, porque é um puzzle de uma só peça. As músicas parecem ligar-se cada vez mais com o avançar do álbum e sentimos cada falsete nas pontas dos dedos. Só nos falta sentir a areia cair entre os dedos.
“12.38”, um dos temas de destaque, é um bom exemplo de música para laurear a pevide, que poderia fazer parte da banda sonora de Guava Island (o filme de 2019 protagonizado pelo próprio Donald Glover e Rihanna). Este disco jorra texturas, camadas infinitas de sons que só captamos depois de passar tudo a pente fino. A imaginação está à solta a partir de “19.10”, quando Glover parece reencarnar Prince. Aguardamos pacientemente pelo teledisco para começar a aprender a coreografia.
Mais contemplativo, menos efusivo, embora igualmente contagiante — assim o diz “24.19″, quando atingimos o auge. Este é o Childish Gambino dos últimos três anos, que se resumem em doze canções. E com uma transição suave, quase a levar-nos a meditar, somos abruptamente interrompidos com um tema excêntrico, frenético e mais enquadrado num Yeezus do que aqui. Regressamos fatigados desta viagem para o destino “35.31”, novamente remetendo ao filme Guava Island, onde a vida é fácil e a água brilha o dia todo.
O álbum chega mais longe quando, nos últimos temas, nos deixa a sós com os nossos pensamentos. Uma balada sobre self-love aquece-nos o coração até fazermos as malas e partirmos para “Feels Like Summer” (ou “42.26”, neste registo). Vergo-me perante “47.48” — é das melhores músicas que Glover já lançou. Termina em excelência com uma conversa gravada entre ele e o filho, que lhe pergunta “do you love yourself?“. As crianças a fazer as questões que importam. A primazia com que Donald Glover consegue levar uma música orelhuda a um fecho destes é de louvar.
Este disco feito de números é, no fundo, uma carta ao nosso “eu”. É o post de apreciação que precisamos para quando não nos chega o amor próprio que temos (ou devemos ter). “There is love in every moment“, exclama Childish Gambino, porque nunca essa frase fez tanto sentido como nos dias que correm.