“Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”: na arte todo o realismo é uma rectificação
João Salaviza confirma na nossa entrevista, durante o festival de Cannes, em maio passado, aquilo que já havíamos vislumbrado. Ou seja, em vez de fazer um filme etnográfico sobre a tribo krahô, no nordeste do estado de Tocantins, em plena Kraholândia, ele e a mulher Ranée Nader Messora devolveram-lhes vida ao registar de forma instintiva o frutuoso registo de gestação antropológica desta comunidade ao longo de um longo processo de nove meses de rodagem na Aldeia Branca com um grupo de não atores. Aliás, um processo em que prolonga o trabalho que a cineasta vinha desenvolvendo no terreno há já algum tempo, inclusive na introdução do cinema na tribo para captarem os seus usos e costumes.
É este o resultado de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, muito do que um filme etnográfico sobre os hábitos e costumes deste povo cada vez mais em risco de extinção. Foi esse filme que vimos o ano passado em Cannes, na véspera de vencer o Prémio do júri da secção Um Certain Regard.
Horas antes, a sala onde decorrera a sessão transformara-se num pequeno foco de ativismo político, onde a comitiva do filme, e vários dos intervenientes no filme, irromperam em slogans políticos contra a política limitadora do ex-presidente Temer – ainda em exercício na altura – e que deverá contar com uma maior intervenção por parte da administração de Bolsonaro.
Numa sequência inicial que parece remeter-nos para um território próximo de Apichatpong Weerasethakul, seguimos a premonição deste jovem ao escutar o pedido do pai defunto para que interrompa o seu luto. Ao longo desse processo decide abandonar a aldeia e seguir para a cidade insistindo que está doente. É aí, entre esse mundo tribal e a civilização ocidental, que reflete sobre o peso da linhagem pajé, no fundo uma missão próxima de um feiticeiro para a qual não se sente preparado, preferindo estar mais perto do seu filho Tepto.
A dupla Salaviza e Nasser parece executar assim um percurso próximo de Jean Rouch ou de Robert Flaherty, como Salaviza confirma na nossa conversa, ao encenar as lendas da comunidade local, consideradas verdadeiras found stories, no fundo histórias baseadas na realidade. E tal como o cineasta americano autor do famoso Nanook, o Esquimó, de 1922, sobre a comunidade esquimó na baía Hudson, no sudoeste do Canadá, realiza um trabalho de expedição em que filma a realidade ancestral deste povo, mesmo quando a atualiza com o contacto com a atualidade. E ao colocá-los nesse mapa do século XXI é que esta dupla dá vida a esta aldeia dos mortos. Pois como diria André Malreaux na arte todo o realismo é uma rectificação.Crítica escrita por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt