Clara Não: “Se soubéssemos para onde íamos, qual seria o interesse de ir?”
Muitos conhecem-na por Clara Silva, mas são cada vez mais aqueles que a chamam pelo seu nome artístico – Clara Não. Ilustradora-escritora e DJ nos tempos livres, tem como objetivo maior “levantar as coisas e levar as pessoas a pensar de outras formas”. Natural do Porto, tem 25 anos e começou muito cedo o seu percurso na arte. Inspirada na ideia de sabermos para onde vamos, mas não como é que vamos voltar, Clara inaugurou a exposição “Já não sei a quantas volto”, na Malapata Gallery.
Formada em Design de Comunicação, trabalhou em empresas, mas a rotina chateava-a. Depois de investir ainda mais na sua educação ao estudar Escrita criativa e Ilustração, na Holanda, a artista freelancer é mestre e está cá para dizer “não”. A arte de Clara é definida pela própria como: honesta (“às vezes demasiado”), irreverente (“na forma como trabalho as coisas”) e ativista (“porque procuro uma ação do outro lado”).
Primeiros rabiscos
Quando era pequena, Clara tinha um limite de dez folhas para usar por dia. Hoje, a artista não tem limites. Clara Não faz de tudo arte, escreve com as duas mãos (e em todos os sentidos) e, fruto dos vários entusiasmos que vai tendo ao longo do ano, tornou-se numa artista muito completa, que não gosta de estar sempre a fazer uma só coisa. A variedade de trabalhos que faz para não se sentir limitada pode ser, como a mãe de Clara vê, algo instável, mas é a vida que a artista escolheu e de que gosta.
Clara Não, não, não
Na construção do seu nome artístico, Clara achou que fazer uma lista de possibilidades parecia uma boa ajuda, mas nenhuma a convencia: “Não me lembro do que escrevi, mas lembro de estar a cortar e a dizer “não, não, não” e depois pensei: porque não? Ficou e resulta! Na altura, não era tão contestatária e ativista. Começou agora.” Com a sua arte, Clara Não tenta “levantar as coisas, abrir discussão e dar amor às pessoas.”
Clara é muito mais do que as frases que magica para o Instagram. Frases como: “Dá-te mais jeito que te ame agora ou mais logo?” e “De ti posso falar, por mim nunca me calo” são inspiradas na vida pessoal da artista. “Não têm necessariamente de ser neste momento, podem ser coisas que eu senti e, como foram fortes, ficaram – tanto pelo bom como pelo mau. Ou podem ser conversas que eu tive com pessoas.”
Sair do umbigo
Um quarto de século de vida chegou para que Clara visse que “Uma coisa importante nos artistas é saírem do umbigo e fazerem alguma coisinha pelo mundo.” Para a artista, o que faz é uma troca “porque se não quisesse feedback é como se as coisas morressem ali.” Receber mensagens das pessoas que dão feedback e pedem opiniões sobre casos específicos da vida delas é muito bom. Mesmo não sendo psicoterapeuta ou psicóloga, Clara tenta ajudar “nem que seja para as pessoas sentirem que não estão sozinhas.”
Arte como maneira de estar no mundo
Ligada desde pequenina ao desenho e à literatura, com a ajuda da sua professora da primária, a artista destra investigou a parte física da escrita e, treinando em quadros grandes ou paredes, domesticou a mão esquerda. Mesmo apesar de já tocar piano, o desafio de escrever e pintar com as duas mãos com a mesma qualidade era “esquisito”. Para Clara, a melhor forma de o fazer “era aprender outra vez!” A partir do método Jean Qui Rit, “um método que liga estórias e fonemas”, Clara rapidamente ganhou algo que a distingue de outros artistas e pessoas. “Para aprender a escrever com a mão esquerda, não usei um livro qualquer. Usei um livro do Estado Novo, da primeira classe. Copiei-o todo, à exceção de alguns textos demasiado sexistas e a favor da patriarquia. Não conseguia ler aquilo, então passei à frente. O que acontecia é que, no tempo de Salazar, era proibido escrever com a mão esquerda porque era considerado do diabo. Não ouves falar de ninguém que esteja à esquerda de Deus, por isso é que Saramago dizia que ele devia ser maneta. O meu pai sentia-se mais à vontade com a mão esquerda quando era novo, mas foi obrigado a escrever com a direita e isso sempre me ficou gravado na memória. E então pronto, usei a mão esquerda. Foi a partir daí também que me apercebi de que o coração é esquerdino e que, se calhar, estar a escrever com a mão esquerda, de uma forma poética, é sentir-me mais perto do meu coração.”
Velho na Estante
De velho, na estante de Clara, há muita poesia. Manuel António Pina, Eugénio de Andrade e Al Berto são alguns dos poetas preferidos de Clara, mas prosa também tem o seu lugar. Na mesinha de cabeceira de Clara há livros de Gonçalo M. Tavares, Herberto Helder, valter hugo mãe e Jorge Luís Borges. Mas Clara não se fica pela leitura. Escreve estórias infantis, que chegou a contar a crianças no Hospital de S. João.
Se antes dedicava muito tempo a pensar no conceito das coisas que criava e a ilustração era apenas um complemento, em 2014, à boleia do programa ERASMUS, foi para a Holanda investigar o tema da narrativa. Ao cruzar-se com o livro Workburger, um livro de banda desenhada (BD) com contributos de vários países, algo mudou. Aí, tentou contar histórias apenas com a ilustração. A BD misturava ilustração com texto e isso era essa junção que interessava a Clara.
Voltar a dar o nó
A artista tinha aprendido a bordar quando era pequenina. Entretanto, foi esquecendo essa aptidão até voltar a aprender. A ligação de Clara ao têxtil já vinha do pai, que é fornecedor de malhas: “Ia com ele às fábricas e dava-me as amostras. Eu tinha caderninhos cheio de tecidos e rendas.” Mais à frente, na faculdade, quando uma colega lhe pergunta se lhe dava autorização para fazer um trabalho que incluía coser coisas, é que Clara se apercebe de que algo: “Aquilo estava a tornar-se uma coisa muito minha.”
Claro que Clara deixou que a colega bordasse e, este ano, ao voltar a pegar nas agulhas, Clara acrescenta o tricotar à sua lista de aptidões.
Podes ouvir a entrevista completa no programa “Ponto Final, Parágrafo”, da ESCS FM, em parceria com a Comunidade Cultura e Arte, e ficar a saber mais detalhes, incluindo quais alguns dos livros que marcaram aquela que, durante a primária, queria ser professora, em:
Se quando era criança, construiu uma reserva de papel para poder pintar mais e mais, com 25 anos, Clara Não edifica o seu projeto artístico com a mesma agilidade.
Neste caso, sabemos onde podemos ir e qual o interesse: a exposição “Já não sei a quantas volto” não vai sair da Malapata Gallery, até dia 19 de março. Aí há desenhos, banda desenhada, prints novos, um texto escrito na parede e bordados exclusivos. Dia 3 de maio, passa para a Apaixonarte, no Príncipe Real. “Mais exposições virão”, promete Clara Não.
O Ponto Final, Parágrafo é um programa da ESCS FM, rádio da Escola Superior de Comunicação Social, feito em parceria com a Comunidade Cultura e Arte.