Classe Crua: quatro mãos ao leme de um dos melhores álbuns de hip hop tuga do ano
O ano era 2016. Classe Crua acabavam de zarpar ao som de “Engana”, o primeiro avanço de um projecto que junta a produção de Sam the Kid às palavras de Beware Jack. Enquanto que o MC e produtor de Chelas é já visto e venerado como um símbolo do hip hop nacional, o rapper nascido Fábio Timas está mais afastado da mira do público. Mas celebridade não é sinónimo de qualidade, e, por pouco que lhe tenha sorrido a primeira, a segunda definitivamente não lhe falta. Este MC de Odivelas é um veterano do hip hop, contando já com quatro álbuns em nome próprio lançados no curto período entre 2009 e 2014, o que nos diz muito sobre a fome de rimas. Além da sua carreira a solo, conta com participações em músicas do grupo Álcool Club, entre outros, e um projecto colaborativo com Blasph.
Sozinho ou acompanhado, Beware Jack mostra rimas que tanto podem sair disparadas como ser frases mais complexas, proferidas num tom rouco e convidativo que atribui às suas letras um carácter ainda mais biográfico. O flow altera-se consoante a necessidade, tem no seu arsenal uma miríade de cadências e esquemas rimáticos que usa para dar voz ao seu personagem storyteller, construindo narrativas que soam discretas sem nunca o ser. A sua entrega modesta acasala muito bem com as batidas de Sam the Kid, que tem mostrado ao longo da sua carreira uma produção que é limpa e “asseada”. Tudo está no sítio certo, a tarola e o bombo a soarem exactamente como deviam soar, assim como as samples milimetricamente cortadas e coladas, para dar nova vida ao tema de onde provêm e ginga ao tema onde se inserem. Nesse sentido, Classe Crua mostra uma união quase perfeita entre dois artistas.
O nome escolhido pelo duo é inspirado pelas músicas que construíram, sentindo-se ao longo do álbum a crueza de um hip hop que infelizmente tem sido relegado nos ouvidos do público. Desde o primeiro momento que essa faceta é clara: “Cobra Capelo” abre o álbum a mandar os haters e as sanguessugas dar uma volta (claramente um eufemismo), com uma voz transfigurada a dar o mote, seguido de um break que deixa água na boca para um tema onde fanfarronice e sabedoria se misturam no “veneno” cuspido por Jack. Escorrega sem o ouvinte dar por isso para “Microfone da Glória”, com um refrão instrumental brincalhão e estrofes com violinos soturnos algo antitéticos, tendo em conta a letra de consagração que ouvimos. Ainda assim, este ambiente atribui às palavras do rapper um feeling de história a ser contada. É o herói do microfone, que navega para onde a inspiração o leva, transportado pelo seu talento.
Beware Jack apresenta-se como um rapper multifacetado: tanto se pode cingir ao papel de observador das ruas, como trilhar por outros caminhos. “Treinar Para Ser Um Milionário” é um exemplo dessa veia mais “tradicional”. Com um beat esparso a soar, Beware Jack sussurra as estrofes como o vigilante atento e silencioso que é, detalhando a realidade das suas ruas. Já em “Ramadão”, vemo-lo mais emocional, distante das ruas, mas perto de quem lá vive: a sua família. É uma confissão sentida de um pai para um filho, alimentada por uma guitarra calorosa e deslizante e uma batida seca; uma tela adequada à história de vida que Beware Jack conta sobre a sua arte, o espólio musical que constrói para o filho sentir que ele ainda vive depois de partir.
E é por causa de músicas como esta e outras tantas que Classe Crua é um trabalho biográfico. Timas usa o seu alter ego musical para nos contar a sua vida, episódios espalhados pela sua caminhada que marcaram a sua existência, sem esquecer os devaneios, fielmente executados em “Aguardente”. A música é uma turbulência, aceleração, um tema com muita pujança, banda sonora adequada a uma bebedeira tresloucada e aos feitos ébrios de Beware Jack, um potente “braggadocio hepático”. Já “Memorabília” é o acordar do dia seguinte, uma viagem ao passado com uma banda sonora soturna de verdadeiro boom bap. A nostalgia invade a caneta de Beware Jack e ouvimos tempos de perdição e falta de rumo, suplantados pela profecia de que a sua escrita estava destinada à grandeza. O refrão de Sam the Kid, cantado num canto do estúdio de forma tristonha, encapsula essa mensagem e garante de forma tremida que, depois do desnorte, a bússola ganha asas em direcção ao infinito.
Essa consagração de Beware Jack é explicada em “A Minha Praia”, onde também contamos com a melhor participação de um convidado em Classe Crua. Ainda que Phoenix RDC traga a sua potência conhecida para “O Lugar do Morto” e Chullage desarme tudo e todos com uma participação fenomenal na fantasmagórica “Chakras”, é estranhamente Sam the Kid quem leva o troféu. Abençoa uma das batidas com uma estrofe com muito para digerir, caracterizada pelas rimas multi-silábicas que já são familiares na escrita deste rapper. É a música que mais incorpora a vertente conceptual marítima presente um pouco por todo o álbum, assim como a canção mais tranquila do projecto, para curtir num barco embalado pelo suave embate das ondas, banhado pelo sol do sucesso. Mas nem Sam the Kid nem Beware Jack deixam que essa calmaria os desarme, apresentando duas estrofes muito bem trabalhadas. O trabalho nunca pára, algo tornado ainda mais claro pelo outro final protagonizado por AMAURA. Transporta-nos para os perigos do alto mar, metáfora sonora de tudo o que os artistas tiveram de enfrentar para chegar a bom porto.
A complexidade musical demonstrada em “A Minha Praia” não é um caso isolado. “Sofrerporteamar” é a música mais ambiciosa de Classe Crua, composta por três partes que detalham uma paixão intensa que Beware Jack sentiu por uma mulher que nunca o amou verdadeiramente. Desde o derrotismo até à libertação, a caminhada é bem orquestrada, sincera e emocional, com uma sintonia clara entre batida e voz. Mas não é o único momento em que se nota que Classe Crua se esforçam para unir as várias músicas entre si: ouvimo-lo nas samples e passagens declamadas que se relacionam com os temas seguintes ou que introduzem com critério os temas onde se ouvem, e sentimo-lo no pouco espaço que temos para respirar entre os vários temas. Ainda assim, há alguns problemas de andamento ao longo do álbum e temas mais discretos, como “Sempre” ou “Coruja”, que têm um impacto menor que as restantes.
Mas os pontos fortes do álbum são claramente superiores às poucas lacunas que apresenta, e Classe Crua é uma bela experiência auditiva e um dos discos essenciais de hip hop tuga de 2019. É um projecto em que se nota a relação de cumplicidade e amizade entre dois artistas que claramente estão no topo do seu ofício. A faixa-título encerra o álbum numa nota positiva e com a certeza de que o passado fica lá atrás, ainda que existam sempre novos desafios e barreiras para transpor. Mas com embarcações deste calibre, quem é que tem medo de enfrentar o Adamastor?