Com raspadinhas e concursos se enganam os tolos
Apesar de no provérbio popular “tolo” ser dirigido a quem é enganado, nunca se deve esquecer que quem erra é, em primeiro lugar, quem engana outrem. Enquanto isto for uma evidência para nós, será sinal de que não estamos assim tão mal e que distinguimos os verdadeiros tolos, que segundo a Priberam se trata de alguém ingénuo ou pouco inteligente. No já longínquo ano de 2000 chegou até nós uma campanha que até então tida sido apenas testada na Hungria: o Dot. Com medo de perder audiências para uma TVI que surgia com toda a pujança a apostar em novos tipos de conteúdos televisivos (Big Brother à cabeça), a SIC lançou a campanha do Dot, um “boneco” amarelo, distribuído em várias superfícies ou mediante a compra de uma certa revista. O boneco tinha depois de ser colocado — invariavelmente durante o horário nobre, onde a TVI tinha feito a maior aposta — num canto do nosso ecrã, sob um espaço delimitado na transmissão, para que uma luz emitida durante um programa seleccionado e a respectiva publicidade (sim, nem durante o intervalo podíamos mudar de canal sob pena de não produzir efeito no Dot) alterasse a cor da película no interior do boneco e depois o remetêssemos para a SIC e ficássemos habilitados a ganhar prémios (carros, viagens, cupões, etc).
Hoje, vinte anos depois desta grande manobra de marketing que foi o Dot (estima-se que tenham sido fabricados vários milhões e utilizados uma boa porção dos mesmos) e mesmo a SIC não tendo resistido ao ascendente da TVI, ainda temos vestígios de vários “Dots” nas nossas transmissões. Com promessas de ofertas de carros (maioritariamente) em boa parte dos programas matinais e que nos acompanham também durante as tardes de sábado e domingo somos convidados a telefonar para um número com um preço fixo ao qual acrescerá o respectivo IVA. Em muitos desses programas ensaia-se o público presente a repetir euforicamente o número “mágico” para que o espectador, de casa, se possa habilitar a ganhar o prémio em jogo. A “sorte grande”, como nos é vendida a ideia. Não desculpando o “Dot”, esses programas adoptam um ponto que a meu ver é ainda mais pernicioso: o público alvo. Enquanto a ideia do “Dot” era vendida a todas as pessoas que estão em casa durante o período pós telejornal (o tal horário nobre), este número mágico, pelo menos nos programas matinais, é focado num público teoricamente mais envelhecido, que está em casa de manhã, durante o horário de trabalho ou de estudo de um público mais jovem. Não quero dizer que se trata de burla, pois em momento algum é dito que é certo o benefício perante o “prejuízo” do valor da chamada, no entanto todos sabemos que as pessoas mais envelhecidas estão mais sujeitas a serem persuadidas (não valerá a pena recordar os inúmeros casos de idosos burlados em vários pontos do interior por vendedores da “banha da cobra”).
Esta prática reiterada das televisões portugueses vem de um hábito já normalizado mas cujos efeitos não parecem ser debatidos com a importância que lhes é devida nem produzem o eco que deviam, muito por culpa dos meios de comunicação e os grupos que os detêm serem os mesmos que reiteram estas mesmas acções.
Num artigo publicado no início do ano passado na revista The Lancet — Psychiatry e depois noutro lançado já no Expresso — com base no estudo para a revista —, Daniela Vilaverde e Pedro Morgado, investigadores da Escola de Medicina da Universidade do Minho, alertam para o perigo relacionado com o aumento dos números relacionados com a compra de raspadinhas em Portugal. Trata-se de um número de tal forma grande (e desproporcional, sobretudo se tivermos em conta o nosso número de habitantes ou o que ganhamos em média) que tornam Portugal no país da Europa onde se gasta mais dinheiro em raspadinhas (aqui). A sua facilidade de acesso e a falta de literacia sobre os riscos são apresentadas como as grandes razões por trás de números que escondem pessoas e escondem outro tipo de problema: “as raspadinhas têm um apelo aditivo e há consequências nefastas para as pessoas que sofrem de Perturbação de Jogo Patológico”, como refere Pedro Morgado após entrevista aos profissionais de saúde e especialistas.
Num país como Portugal, onde a exploração dos jogos sociais e a sua respectiva divisão cabe ao Estado (aqui e aqui) pedir-se-ia maior responsabilidade deste sobre a legislação, mecanismos de controlo e respostas a este problema, correcto? Não. Ao invés disso fomos premiados com uma raspadinha “Do Património Cultural“, uma ideia deste Governo, nomeadamente do Ministério da Cultura, que será lançada no dia 18 de Maio, cuja receita é integralmente atribuída ao Fundo de Salvaguarda do Património Cultural e que se “destina a despesas com intervenções de salvaguarda e valorização patrimonial”. Apesar dos comprovados efeitos nocivos da raspadinha nas nossas vidas e de tantas outras formas de jogo, os seus “benefícios” continuam a ser mais vendidos e ecoados, seja pelos prémios em que podem resultar, seja pelo dinheiro que, em último caso, irá para serviços essenciais nas nossas vidas como o Serviço Nacional de Saúde. Mas deveria ser assim? Não é para isso que milhares e milhares portugueses descontam ao final do mês? Continua-se, reiteradamente, a tentar colocar pensos rápidos em feridas estruturais usando-se o dinheiro lá investido como medida de propaganda à perpetuação de um hábito aditivo e com resultados negativos para a nossa saúde mental enquanto colectivo.
À falta de medidas concretas para ajudar a Cultura em Portugal, o Ministério responde com o que mais parece ser uma espécie de “imposto indirecto” (apesar de não o ser) a um problema estrutural (e cuja solução também o terá de ser), não servindo de solução concreta quer para o nosso património cultural quer para os profissionais no âmbito da Cultura, fustigados pela precariedade no seu sector.
Não deixa também de ser sintomático que são, comprovadamente, as famílias que menos posses têm que mais dinheiro gastam em raspadinhas. Serão, consequentemente, os que menos têm, a ajudar a Cultura em Portugal. A solução que se encontrou para a Cultura foi o “Dot” governamental, mas a que custo? Fica para uma próxima uma medida onde no lugar das raspadinhas haja um maior fomento do gosto pela Arte e pela Cultura no nosso ensino e na nossa vida e que se reverta em larga escala numa número de aquisição (benefícios directos) de bilhetes para assistir aos espectáculos nas suas mais variadas vertentes.