“Coma”, o gesto provocador e disruptivo de Bertrand Bonello
Este artigo pode conter spoilers.
O mais recente filme de Bertrand Bonello integra a secção Silvestre do IndieLisboa 2022. “Coma” é explicitamente dedicado pelo realizador à sua filha adolescente. No início e final do filme, ouvimos as palavras de Bonello, procurando transmitir algum conforto e empatia ao rebuliço e alienação inerentes à fase da vida que atravessa, exponenciados pelo contexto pandémico. No primeiro momento, as palavras são acompanhadas de filmagens caseiras falhadas (como se o realizador se tivesse esquecido de desligar a câmara), um prólogo experimental enquadrador da obra. O epílogo conclui o filme em jeito apocalíptico, com imagens da força destruidora da natureza (fogos, tsunamis, degelo, etc.), não numa perspetiva niilista mas de esperança e alento mesmo perante os severos desafios impostos à humanidade, personificada na filha do cineasta.
“Juntamente com “Nocturama” (2016) e “Zombie Child”, “Coma” completa uma trilogia onde Bonello pretende captar o zeitgeist da adolescência contemporânea, onde a alienação provocada pela transição de idade é potenciada pela sociedade humanamente desconectada onde vivemos.”
No meio, temos o filme propriamente dito, passado quase em exclusivo no quarto da personagem principal, protagonizada por Louise Labèque (Fanny, de “Zombie Child” (2019)). Os constrangimentos provocados pela pandemia estimulam Bonello a encontrar formas inventivas de retratar o conflito interno da personagem, mediando as imagens através da utilização de vários dispositivos – vídeos de YouTube, videochamadas no FaceTime ou no Zoom e câmaras de vigilância. Para além de retratar os vários períodos de confinamento, permitem diversificar a abordagem formal do filme e garantem a visualização simultânea do campo e contracampo dos diversos personagens no quadro, alcançado pelo fracionamento dos ecrãs através do split screen.
Bonello acrescenta ainda uma camada adicional em “Coma” com a utilização de animação e stop motion. Os vários métodos ao dispor do realizador permitem-lhe navegar pelos sonhos e imaginação de Louise, materializando a sua angústia na busca de uma identidade e sentido para a vida. Os vídeos de YouTube são protagonizados por Patricia Coma (Julia Faure), um género de guru espiritual/influencer que Louise segue religiosamente. Nas cenas de animação a personagem principal imagina uma conversa no seu quarto com um serial killer. O stop motion é utilizado na encenação de uma telenovela melodramática com bonecos Barbie. Os sonhos desenrolam-se num bosque sombrio e misterioso, denominado free zone, onde a câmara assume o ponto de vista da protagonista, enquanto se vai cruzando com personagens da sua vida real. As palavras ditas pelos personagens dos vários fragmentos do filme intercalam-se e repetem-se. Afinal, não nos esqueçamos, têm origem na mente da própria Louise.
Juntamente com “Nocturama” (2016) e “Zombie Child”, “Coma” completa uma trilogia onde Bonello pretende captar o zeitgeist da adolescência contemporânea, onde a alienação provocada pela transição de idade é potenciada pela sociedade humanamente desconectada onde vivemos. No fundo, e é assumido diretamente pelo cineasta francês em “Coma”, Bonello pretende apenas aproximar-se da filha, minimizar o gap geracional, compreender os seus anseios e ajudá-la a ultrapassá-los através do seu amor e afeto. E é esta sinceridade e empatia que demarcam o realizador das acusações de cinismo com que os seus filmes anteriores foram recebidos (“Nocturama”, principalmente), convidando à reavaliação da sua filmografia. No entanto, (e diríamos, felizmente) permanece a atitude provocadora e disruptiva a que sempre nos habituou, onde a morte e violência estão sempre à espreita, fora de campo.