Complexo de Jocasta
Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.
Quem lê a tragédia «Rei Édipo» de Sófocles não pode deixar de notar um pormenor interessante: quando Jocasta compreende (antes de Édipo, seu filho, ter percebido a situação) que viveu casada com o próprio filho durante mais de duas décadas e dele teve quatro filhos, Sófocles leva-nos a sentir que, da parte dela, desde que ninguém venha a saber a não ser ela, tudo bem.
A psicanálise fala-nos permanentemente do complexo de Édipo, mas o tema da mulher apaixonada pelo próprio filho mereceria, a meu ver, um destaque maior do que tem tido na arte e no pensamento: porque é, muito simplesmente, uma realidade que a observação empírica da realidade nos confirma como (passe a redundância) real. Muito real.
Mãe e filho que vivem como casal – e dizer que vivem como casal não obriga a que durmam na mesma cama ou tenham, sequer, relações sexuais: não posso negar que conheço mais de um exemplo. Mas o que me leva a partilhar esta reflexão foi o facto de ter revisto o filme «La Luna» de Bertolucci (1979), cineasta que os bem pensantes sempre desprezaram, mas cujo cinema tem muito a dizer a pessoas que não se identifiquem como críticos de cinema (e devo dizer que quando eu próprio fui crítico de cinema do Público entre 1990 e 1994 nunca me deixei tiranizar pelo que era «convenu» pensar no meio – portanto, sempre dei atenção ao cinema do «cabotino» Bertolucci).
«La Luna» é um filme imensamente incomodativo; não há como negá-lo. É um filme que nos mostra dois filhos apaixonados pelas mães e duas mães apaixonadas pelos filhos: e não foge ao incómodo de tudo o que isso implica.
Vi o filme em 1979, quando saiu; e vi-o depois algumas vezes em anos subsequentes, mas já não o via há vinte anos e hoje fiz a experiência de o rever. Aquilo que mais me chamou a atenção foi o facto de me lembrar de todas as referências musicais; mas, ao mesmo tempo, apaguei muitas outras coisas. O lado cómico do filme, por exemplo, foi rasurado na minha lembrança (e ele tem pelo menos uma cena mesmo MUITO cómica).
Mas o que chamou mais a minha atenção foi aquilo que hoje me pareceu a utilização metafórica da toxicodependência do filho criado e educado por uma das Jocastas do filme. Dei por mim a pensar que o «onde é que eu errei?» que a mãe exprime relativamente à toxicodependência do filho sugere que essa toxicodependência é, na verdade, uma «folha de parreira» a camuflar um tema que, em 1979, seria ainda mais tabu (e que certamente teria levantado a Bertolucci problemas de financiamento para o filme): a homossexualidade do filho adolescente.
No final do filme, a Jocasta interpretada por Jill Clayburgh diz ao filho «now you’re in love with your father» e o filme acaba, de facto, com a sugestão de transferência – da mãe para o pai – do amor do adolescente.
Um filho apaixonado pelo pai e vice-versa é, claro está, terreno mais tabu ainda do que Jocastas e Édipos… terreno que nem os tragediógrafos gregos ousaram pisar. Honra seja feita ao «cabotino» Bertolucci por ter feito, em 1979, um filme tão ousado – que ainda hoje nos perturba. Muito, mesmo.