“Conversas com o Diabo”: o ambiente e o terror nostálgicos

por João Estróia Vieira,    3 Janeiro, 2025
“Conversas com o Diabo”: o ambiente e o terror nostálgicos
“Conversas com o Diabo”, dos realizadores Cameron e Colin Cairnes

Este artigo pode conter spoilers.

“Conversas com o Diabo” (do original inglês “Late Night with the Devil”), dos realizadores Cameron e Colin Cairnes, é um intrigante exercício de terror psicológico que nos leva à década de 70. Os irmãos Cairnes, que têm colaborado em diversos projetos como realizadores e argumentistas, criam aqui uma obra que mistura habilmente nostalgia e terror. O filme destaca-se pelo seu cenário meticulosamente detalhado, o design de produção evocativo e os figurinos que capturam perfeitamente o espírito da época. A recriação do ambiente televisivo dos anos 70 é particularmente impressionante, desde os tons amarelados das luzes de estúdio até ao estilo dos apresentadores e convidados.

O protagonista, David Dastmalchian, oferece uma performance notável, assumindo-se como “leading role” e uma escolha perfeita para dar vida a um carismático mas inquietante apresentador de talk-show chamado Jack Delroy. A sua capacidade de alternar entre o charme televisivo e um comportamento perturbador confere ao filme uma tensão crescente que cativa o público. A introdução (a fazer lembrar o estilo de intro utilizada em filmes mais antigos), que contextualiza a narrativa e prepara o terreno para o que está por vir, é eficaz e desperta a curiosidade. O filme mergulha-nos rapidamente na atmosfera da noite de Halloween de 1977, uma noite onde as fronteiras entre entretenimento e horror se esbatem de forma assustadora pela necessidade de audiências do programa de Jack Delroy.

“Conversas com o Diabo”, dos realizadores Cameron e Colin Cairnes

Inspirado pelo estilo found footage, um subgénero muito popularizado em filmes de terror como “REC” ou “The Blair Witch Project”, “Conversas com o Diabo” simula um programa de televisão que acaba por correr mal. A premissa é, desde logo, interessante: um talk-show ao vivo durante o Halloween que tenta explorar temas paranormais e se transforma num evento descontrolado. Esta abordagem cria uma sensação de realismo que aumenta a imersão, especialmente durante as sequências que recriam a transmissão televisiva. No entanto, o filme trai algumas vezes a sua própria estética e premissa quando se afasta do formato de found footage para explorar os bastidores da gravação, quebrando parte da ilusão criada. Uma ilusão que em certa altura nos mete a pensar se estamos a assistir a uma found footage ou somos também nós, espetadores, parte dela?

Esta decisão de abandonar parcialmente o formato original para seguir as histórias pessoais dos protagonistas é divisiva. Embora permita um maior desenvolvimento das personagens e uma exploração mais ampla dos eventos, também enfraquece o impacto geral da narrativa e do nosso foco na experiência paranormal. Ao sair do rigor do estilo e da época, nomeadamente com o uso exagerado de um CGI muito questionável (no estilo e não o seu uso propriamente dito), o filme perde parte da tensão acumulada, afastando-se da imersão que o tornou inicialmente tão envolvente. Filmes como “Ghostwatch”, que permaneceram fiéis à simulação de transmissão televisiva, são exemplos de consistência na abordagem que lhes vale um reconhecimento devido, merecido e que merece ser recordado como termo comparativo.

Dentro do género, “Conversas com o Diabo” continua a ser uma experiência interessante e criativa, especialmente pela forma como explora o formato de um programa de televisão como palco para o horror. Apesar das suas falhas estruturais e do final que vai um pouco a todo o lado sem nunca ir a lado nenhum em concreto, o filme destaca-se pela sua atmosfera cuidadosamente construída e pela atuação (muito) sólida de David Dastmalchian e de Ingrid Torelli enquanto Lilly. Para os fãs de terror psicológico e de experiências narrativas pouco convencionais (apesar do exorcismo já não ser propriamente uma novidade nos filmes de terror), esta é uma obra que vale a pena explorar, mesmo que deixe a sensação de que poderia ter alcançado um maior impacto se tivesse mantido a sua abordagem inicial e maior foco num final concreto e decidido. Ainda assim, é competente o suficiente para passar uma das suas principais questões: até onde vale a pena ir pela fama e pelas audiências e qual o preço a pagar por isso?

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