‘Conversations with a Killer: The Ted Bundy Tapes’: o interior da mente de um serial killer
A mente humana é um abismo. Um abismo perigoso, mais profundo que o fundo oceânico. É perturbadoramente sombria, onde a luz dificilmente consegue alcançar. É um lugar de medo, pânico, paranoia e terror. Um lugar que facilmente pode contaminar a nossa conduta, envenenar o nosso espírito e incitar as nossas piores ações.
“Guilt? It’s this mechanism we use to control people. It’s an illusion. It’s a kind of social control mechanism — and it’s very unhealthy. It does terrible things to our bodies. And there are much better ways to control our behavior than that rather extraordinary use of guilt.”
Nas próprias palavras de Ted Bundy, o assassino em série que tirou a vida a mais de 30 jovens na década de 1970, a culpa é um mecanismo de controlo e a ilusão da ausência da mesma provoca, exatamente, o oposto. O novo documentário da Netflix, Conversations with a Killer aborda precisamente o caso da personalidade que deu origem ao conceito de serial killer. Ao longo de quatro horas e meia somos levados para este mundo dúbio, ambíguo e de conclusões difíceis, sediado na vida e na mente de um assassino em série. Como um capítulo real de Mindhunter, Conversations with a Killer é uma colagem de acontecimentos verídicos que pretendem ilustrar a realidade em torno da captura, motivação e condenação de Ted Bundy.
A arte documental é complicada. Complicada porque vagueia por linhas ténues de compreensão, envolvimento e apresentação de factos. A Netflix tem-se aventurado de forma ousada por esta temática e problemática dos assassinos e o sucesso parece ser uma consequência apelativa para a gigante do streaming: Making a Murderer, The Staircase e Evil Genius são alguns destes casos. Mas a abordagem que é feita durante o documentário está inteiramente ligada ao que os cineastas pretendem trazer para o público. Estes cineastas necessitam de estabelecer uma coerência entre a visão sensacionalista dos acontecimentos que estão a relatar e a veracidade factual em que se baseiam. É importante informar o público sobre estas questões, mas deve-se fazê-lo de forma honesta, não tendenciosa e, muito menos, recorrer a metodologias alternativas para enaltecer a sua posição relativamente à temática que é foco do seu produto artístico.
Joe Berlinger, o realizador dos quatro episódios de Conversations with a Killer, já provou que casos mediáticos de homicídio, de certa forma, o fascinam. Em 1996, lançou o primeiro capítulo de uma trilogia documental – de nome Paradise Lost – e foi, passo a passo, revelando as lacunas do sistema judicial norte-americano, reforçando a posição da sociedade em torno dos casos, ao mesmo tempo que ia vasculhando pelos factos que alimentam estes acontecimentos horroríficos de larga escala. Por vezes, a linha entre factos e posição crítica embrulha-se em si mesma, criando um nó que pode comprometer o próprio objetivo do documentário. Aproveitando as cassetes de áudio reais duma entrevista feita a Ted Bundy, Joe Berlinger decide criar uma narrativa gradual em explicar quem era este indivíduo, o que o torna – de certa forma – apelativo ao público, os crimes mais hediondos que cometeu, e procura entender (com a ajuda de testemunhas, membros da autoridade policial envolvida, familiares e jornalistas) o que o levou a cometê-los.
É claro que o exercício documental não consegue ir ao fundo de certas questões e, infelizmente, torna-se mais um exemplo expositivo do que propriamente elucidativo da conduta do assassino. Com a tecnologia forense de agora, talvez fosse possível explorar mais detalhadamente os resultados da psicopatia de Bundy. Nos anos 70, os homicídios atingiam o seu auge nos Estados Unidos, dando à luz alguns dos mais notórios serial killers existentes à face da Terra: John Gacy, Charles Manson, Jeffrey Dahmer, entre outros. A tecnologia e a formação de especialistas na área forense eram escassas e tudo o que os investigadores podiam fazer era limitar-se ao pouco que tinham para criar uma linha-guia dos casos. Isto poderá certamente colocar em causa algumas questões éticas relativamente aos processos de abordagem dos próprios casos policiais da altura. Mesmo assim, há certas provas inegáveis que colocam Ted Bundy como único suspeito e nos locais exatos onde as vítimas haviam sido capturadas e mortas. O rasto de cadáveres é extenso e, pela falta de motivações do próprio assassino, logo sabemos que estamos perante uma sede incontrolável de afirmação, subjugação e loucura.
A mente humana é, de facto, perturbadora. Um meio quase inexplorado, como a mais densa floresta tropical que esconde os perigos mais assustadores. Uma sociedade é facilmente comparável a uma floresta em que predadores e presas andam lado a lado, camuflados dentro de identidades instáveis, com instintos diferentes, personalidades e mentalidades contrastantes e atitudes ambíguas que comprometem o seu dia a dia. A sociedade é incontrolável, mesmo que sejam aplicados mecanismos para a controlar. Por muito que as leis e as normas sociais existam para dar estabilidade ao meio social, apenas nós próprios é que podemos submeter-nos a elas. Ilegalidades vão existir sempre e a lei deve, acima de tudo, ser respeitada, mas o grande problema com o homicídio é precisamente de que não são apenas as leis sociais que são transgredidas, mas também as próprias leis pessoais. Ted Bundy serpenteia por um conflito moral extremamente delicado, onde a negação tenta superar os seus instintos mais obscuros.
Mas Conversations with a Killer explora outras componentes que surgiram como consequências (e impacto) dos assassinatos de Ted Bundy na sociedade norte-americana: a temática delicada da pena de morte e do cinismo norte-americano em festejá-la (como se fosse um motivo aliciante para beber uns copos e vender merchandise). É irónico que o mediatismo e importância dados a estes assassinos os levem a ser celebrados (seja de que maneira for), em vez de tentar descartá-los desta fama que não merecem ter. Ted Bundy assassinou (pelo menos) 30 jovens mulheres que tinham toda uma vida pela frente. Privou-as de sonhos, ambições, sucessos, felicidades e incertezas; Ted Bundy removeu deste planeta almas que nunca tiveram oportunidade de lutarem pelos seus futuros. Isto não é motivo para celebração; é motivo para reflexão. Não querendo, aqui, estabelecer nenhuma posição política relativamente à pena de morte. Não é isso que se pretende ilustrar nestas palavras, mas sim de que ignorar um vulto que causou tanta dor e sofrimento, e que retirou a oportunidade de trinta jovens de viver a sua vida, é sem dúvida melhor do que torná-lo numa espécie de celebridade. Ted Bundy alimentava-se disso mesmo: de um estrelato (e estatuto) que sempre pretendeu alcançar. Dar-lhe importância era exatamente o que ele queria.
Conversations with a Killer é, portanto, um exercício documental bastante competente, mesmo que se limite a expôr os factos frágeis da altura. Teria um impacto muito maior se procurasse utilizar recursos atuais para trazer uma veracidade maior e uma explicação ainda mais credível das motivações de Ted Bundy e da forma como planeou e executou todos estes homicídios. Com uma abordagem cronológica surpreendente, e uma visão simplista e pouco tendenciosa, a nova série documental da Netflix tem potencial para abordar outros casos do género, trazendo novas perspetivas e novas provas para informar sobre estes assassinos em série que, mais do que “celebridades mediáticas”, foram causadores de dor, sofrimento e morte.
“You learn what you need to kill and take care of the details. It’s like changing a tire – the first time you’re careful, by the 30th time, you can’t remember where you left the lug wrench.”
Entender a psicopatia de um assassino em série não é algo linear. É, inclusive, uma proeza científica perceber como estes indivíduos compreendem o mundo que os rodeia, como encaram a felicidade, como conseguem criar uma dualidade psicológica e camuflar outras identidades de forma tão natural e, acima de tudo, qual é o prazer que retiram em tirar a vida a outro membro da sua espécie. Ficamos a saber superficialmente o que Ted Bundy pensa acerca das mulheres, já que todas as suas vítimas eram do sexo feminino, e apesar da sua relação breve com todas, é extremamente importante decifrar o padrão que o levava a escolhê-las. Mesmo que nunca saibamos exatamente o que ocorre na mente débil de um assassino, é urgente que se trace um perfil psiquiátrico dos motivadores que os impelem a cometer estes crimes.
Conversations with a Killer é, mais do que uma mera apresentação de Ted Bundy, uma tentativa de desmistificar a sede violenta que atormenta a mente deste indivíduo. A poucos dias da sua execução, Bundy confessa os seus crimes. Ainda que continue a negar a sua culpa, alegando que a pornografia é precisamente um incitador deste tipo violento de comportamentos, Bundy nunca perde a postura e mantém-se fiel à crença de que é inocente. A pornografia não é um mecanismo de controlo, senão a maioria da população deste planeta estaria atrás das grades. O sentimento de culpa não é propriamente um mecanismo de controlo impingido por outrém, mas sim algo que é nosso e que coabita na nossa vida e da qual não há escapatória possível.
Artigo escrito originalmente por Jorge Lestre para o site CineAddiction e publicado aqui com a devida autorização do autor.