Covid-19. Suécia no universo de comparações descabidas e seletividade avulsa
Muita tinta tem corrido sobre as diferentes estratégias dos países no combate à pandemia. Entre as inúmeras comparações que se fazem, um dos exemplos mais inglórios e repetidamente usados é o da Suécia. Raquel Varela, por exemplo, surgiu recentemente no Público com mais algumas linhas de raciocínio extraordinárias: “Os meios são indissociáveis dos fins. Os suecos chegam ao fim deste caminho como uma sociedade mais adulta, responsável e democrática. Nós estamos mais frágeis, menos democráticos, menos sapiens sapiens. Não me respondam que lá há mais dois mil mortos. Não vim aqui debater mortos. Vim falar sobre a vida.”, escreve Raquel Varela num artigo de opinião para o Público (14 de Dezembro de 2020).
Não sou epidemiologista, não tenho sequer background na saúde, mas é possível perceber quando há questões elementares que são ignoradas pelos comentadores, onde se inclui a Raquel Varela, para construir uma narrativa, e quando ela peca por ignorar à cabeça tudo o que não convém, na ânsia de branquear os exemplos oferecidos. O problema está precisamente no ignorar desses detalhes, no cherry picking. Daí até à desonestidade intelectual vai um passinho.
A Suécia é um país que, em termos pandémicos, jamais poderá ser comparado a Portugal (ou a qualquer país europeu do sul, já agora), essencialmente por questões demográficas, mas não só.
Comecemos pelo seguinte, que não sei se já ocorreu à Raquel Varela e demais comentadores: a Suécia é um país que, em termos pandémicos, jamais poderá ser comparado a Portugal (ou a qualquer país europeu do sul, já agora), essencialmente por questões demográficas, mas não só.
Será assim tão rebuscado lembrar que Portugal, com uma estratégia ao jeito sueco, teria muito mais mortos do que a Suécia tem hoje, se até a Suécia, com inúmeras vantagens sociais, demográficas e económicas tem mais mortes por COVID-19 que Portugal, e muito piores ainda do que os seus vizinhos que, entre outras medidas, confinaram?
Qual seria o cenário português (ou de qualquer outro país do sul da Europa, já agora), com a estratégia sueca? Não sei porque é que este exercício tão essencial parece ser evitado sistematicamente por tais comentadores, quando ele é precisamente o cerne da questão aqui, algo a ponderar antes sequer de se procurar fazer qualquer tipo de apreciação.
Está óbvio que a Suécia deve ser comparada primeiramente aos seus vizinhos nórdicos. Não o fazer, é suspeito. É essa a comparação devida. É essa a comparação mais próxima da honestidade intelectual, mais próxima do ideal, que seria ceteris paribus, evitando alterar ao máximo as condicionantes pois, se alteramos substancialmente as condicionantes demográficas e até geográficas nas comparações que traçamos, a comparação passa a ser desigual e tanto mais descabida quanto maiores forem as diferenças nas mesmas, pecando assim pelas inúmeras omissões.
Está óbvio que a Suécia deve ser comparada primeiramente aos seus vizinhos nórdicos. Não o fazer, é suspeito.
Comecemos então pela comparação devida. Eis os dados dos países nórdicos, obtidos a 15/12/2020 no site worldmeters.info:
Noruega:
- Confinou a 12 de março
- 73 mortos por milhão de habitantes
Finlândia:
- Confinou a 16 de março
- 84 mortos por milhão de habitantes
Dinamarca:
- Confinou a 13 de março
- 166 mortos por milhão de habitantes
Suécia:
- Não confinou (pormenor importante que muita gente não tem referido: também não tem a legislação para o fazer sem alterar as leis primeiro).
- 757 mortos por milhão de habitantes
Em matéria de mortes por milhão de habitantes, a Suécia tem aproximadamente:
- 10,3 vezes mais mortos do que a Noruega.
- 9 vezes mais mortos do que a Finlândia.
- 4,6 vezes mais mortos do que a Dinamarca.
Pior, conforme alertou um leitor, a Suécia tem perto de 7 vezes mais mortos do que os seus três vizinhos juntos, por milhão de habitantes, tendo em conta que os seus vizinhos têm 16,79 milhões de habitantes no seu conjunto.
[Em mais detalhe: A soma da população da Dinamarca (5 801 506), Finlândia (5 544 652) e Noruega (5 440 507) dá um total arredondado de 16,79 milhões de habitantes (16 786 665, para ser mais exato). Com 1822 mortos no conjunto dos três países, obtemos 108,5385 mortos por milhão de habitantes.
Se a Suécia tem 757 mortos por milhão de habitantes, então tem praticamente 7 vezes mais mortos por milhão de habitantes do que o conjunto dos três vizinhos (ou 6,97448370855, para ser mais exato).]
É de uma ousadia considerável sugerir que a estratégia sueca seria recomendável para Portugal, sabendo que Portugal e outros países do sul da Europa estão longe das condições demográficas vantajosas da Suécia (juntamente com os seus vizinhos nórdicos). Uma Suécia com uma situação demográfica como a nossa facilmente teria uma situação bem pior. E note-se que mesmo com uma péssima situação demográfica, social, e económica, Portugal tem de momento menos mortos que a Suécia por COVID-19, sabendo que seguimos uma estratégia similar à dos vizinhos da Suécia, uma iniciativa tomada rapidamente logo em março. Isto já para não falar que temos a tenebrosa Espanha logo aqui ao lado, que reagiu mal e tardiamente para o seu respetivo cenário pandémico (tal como o Reino Unido, que ponderou inicialmente a estratégia da “imunidade de grupo”, antes de se arrepender e tomar medidas para mitigar o estrago). Espanha essa que representa um óbvio risco acrescido de transbordo fronteiriço do contágio. Esta segunda vaga é, de resto, elucidativa do que acontece quando Portugal não toma medidas tão cedo nem tão incisivamente quanto tomou na primeira, se dúvidas houvesse.
Uma vez traçada a comparação devida entre a Suécia e os seus irmãos nórdicos, que tanta gente evita fazer sempre que procura enaltecer o que vêem como um suposto “bom exemplo sueco”, importa apontar agora, adicionalmente, porque é que é descabido comparar a Suécia com Portugal, de forma a estabelecer, por inferência lógica, porque é que a Suécia estaria ainda pior se tivesse uma demografia como a portuguesa, a italiana ou a espanhola, ao invés da demografia mais comparável à norueguesa, finlandesa ou dinamarquesa (que tão bem se saíram comparativamente). Tal é essencial, pois os cenários teriam de ser sempre ajustados à realidade material dos diferentes países.
Pegar nos atuais indicadores portugueses e assumir que eles seriam os mesmos (ou melhores) com a estratégia sueca é um exercício de desonestidade e de irresponsabilidade atroz. A Suécia, com uma demografia como a nossa, perderia as seguintes vantagens demográficas e geográficas de que goza presentemente:
- Fronteira com países com excelente controle sobre a pandemia desde a primeira vaga, enquanto nós fazemos fronteira com Espanha, um dos piores países do mundo no que toca ao descontrole pandémico na primeira e segunda vagas;
- População menos envelhecida;
- Menos pacientes com diabetes, obesidade e outras complicações estatisticamente associadas, que engrossam os grupos de risco;
- Menor densidade populacional;
- Menor índice de coabitação da mesma residência (há mais gente na Suécia a viver em domicílio unipessoal, o que é uma vantagem também para evitar a propagação dentro de 4 paredes, entre familiares).
Fontes e dados:
Quem pega no exemplo sueco, evitando enquadrá-lo no seu próprio contexto nórdico e contrastá-lo com os vizinhos, não está a ser honesto, nem verdadeiro, e faz um enorme desserviço à devida compreensão da questão pandémica, omitindo fatores que pesam e muito na questão.
Esta crónica foi editada às 23:20 de forma clarificar melhor alguns valores e corrigir alguns erros de construção frásica.