“Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski, e o sonho que Nietzsche personificou
O bicentenário do nascimento de Dostoiévski vai-se celebrar em Novembro. Como tal, vamos recordar o livro que continha o sonho que Nietzsche personificou na vida real — “Crime e Castigo”.
O episódio mais significativo da vida Nietzsche e que, consequentemente, serviu de base para o filme “O Cavalo de Turim”, de Béla Tarr, ocorre quando, a três de Janeiro de 1889, em Turim, na praça Carlo Alberto, o filósofo observa um cavalo a ser chicoteado por um cocheiro. Em pranto e levado por um acesso de compaixão, abraça-se ao pescoço do animal, começa a chorar e, por conseguinte, desmaia. Dias depois, é o seu amigo Overbeck quem o vai buscar à cidade italiana e Nietzsche, desta feita, é internado em Basileia e, posteriormente, num hospital psiquiátrico na cidade alemã de Jena. O autor de “Além do bem e do mal”, após vários tratamentos, ainda regista algumas melhorias mas, a posteriori, o seu estado mental só se degradaria e, por isso mesmo, terminaria os seus dias sob a tutela e cuidados da sua mãe e sua irmã, num estado de completa dependência. A sua irmã, depois, viria a ter total acesso à obra do filósofo e faz reformulações consoante as suas conveniências e convicções — foi isto que, verdadeiramente, traiu Nietzsche, uma vez que levaria muito tempo até que académicos começassem a desvincular o alemão das teorias perpetradas por Hitler e pelo regime Nazi.
O episódio ligado à imagem do cavalo a ser chicoteado é o mais significativo da vida de Nietzsche, porquê? Porque há um antes e um depois do cavalo de Turim. O filósofo já tinha demonstrado alguns acessos do seu comportamento, acessos, esses, que indicariam que algo, efectivamente, já não estava bem. Mas a partir do momento em que Nietzsche vê aquele cavalo em pleno sofrimento, já não haveria retorno, o filósofo daria o passo final para se entregar à loucura, à inanição e à dependência da qual já não haveria hipótese de regresso. Nietzsche abriu a última porta para se entregar ao seu abismo e, o curioso, é que essa porta, afinal, não era mais do que uma espécie de recriação no mundo real de um sonho de Raskólnikov, isso mesmo, a personagem principal de “Crime e Castigo”, de Dostoiévski. É então que compreendemos que Nietzsche, ao abraçar aquele cavalo em dor, não abraçava, só, aquele cavalo singular. Ante o sofrimento do equídeo, o alemão pôde vislumbrar uma metáfora para o sofrimento humano e compreender o verdadeiro significado de “pathos”, um elo e consideração perante a miséria do outro porque, também, representa a nossa. Nietzsche não abraçava só um cavalo, abraçava as amarras da humanidade e foi Dostoiévski quem lhe proporcionou isso.
Os sonhos entraram na ribalta em 1900, com Freud, e começaram a reivindicar um interesse científico que, até aí, não tinham. Fomentaram conteúdo de interesse para religiões ou crenças, com outros interesses além da capacidade que a ciência tem de mensurar, estratificar e formular hipóteses com base em algo palpável. Toda a ciência que visa os elementos oníricos nem hoje gera consenso, tal não quer dizer que, a literatura, e até mesmo a arte em geral, não tivesse ousado ainda muito antes embrenhar na profundidade da consciência humana e entendê-la a fundo. Os sonhos, portanto, desde o início sec.XIX (tendo em conta a nossa era moderna) já faziam parte do mundo literário. São exemplos disso “Frankenstein”, por exemplo, de Mary Shelley. A esse nível, a própria “Alice no país das maravilhas” também estabeleceu um marco (menosprezar o livro apenas por ser para crianças é um erro), e o próprio “Crime e Castigo”, como já vamos ver, também entra no leque. A diferença é esta, o séc. XIX da 1.ª revolução industrial de Mary Shelley, Lewis Carrol, Dostoiévski, Schopenhauer e do próprio Nietzsche permitiu a desvinculação do ser-humano do seu lado divino e etéreo e, tal, permitiu que se começasse a formular a questão da consciência e do pensamento de uma outra forma. Todos estes livros e todos estes autores tratam a questão dos impulsos humanos e vão além do conceito de que temos o total controlo da nossa racionalidade. Ao fazê-lo, integram os sonhos dentro do próprio humano, da própria natureza do nosso ser — aqui, nós somos a nossa própria fonte. É confronto do Homem com ele mesmo quando se encontra sozinho. Isso gera sempre desconforto, uma náusea, a sensação do absurdo e, por isso mesmo se pode dizer que estamos perante as bases do niilismo e existencialismo que marcaram fortemente, também, o pensamento filosófico do séc.XX.
Dostoiévski, através dos seus livros, levou esse confronto humano mais longe e, por isso mesmo, pode-se considerar o grande psicólogo da literatura. “Crime e Castigo”, publicado em 1866, o livro do qual se fala, justamente, comprova isso mesmo pela ponte que faz com a própria psicanálise, o realismo duro de uma sociedade russa czarista e desigual e o confronto das suas personagens com essa realidade. Dá espaço, assim, para o desenvolvimento de um tipo de niilismo, existencialismo que, no livro em si, não abandona a noção de Deus, mas coloca a noção de castigo e culpa dentro de nós, no próprio confronto connosco mesmos.
Raskólnikov trata-se de um jovem estudante da universidade de Direito a viver em São Petersburgo. Encontra-se sem trabalho e sem dinheiro, inicialmente longe da sua irmã e mãe que, por sua vez, também passam por inúmeras dificuldades. Por essas mesmas razões, recorre frequentemente a uma agiota de idade, avarenta e sem qualquer tipo de compreensão ou bondade pela sua situação, que lhe penhora os seus bens, a baixo preço e juros altíssimos. O jovem acaba por cometer um crime, mata a agiota, e o que vemos no decorrer do livro é o conflito consigo mesmo por ter cometido tal façanha. Matar a idosa seria uma questão de justiça social? Quando se fala de alguém que contribui para a perpetuação e degradação da realidade social vigente, o assassínio torna-se aceitável ou é, eticamente, reprovável à mesma?
O realismo em “Crime e Castigo”, a descrição efectuada, é assombrosa. É decadência da total miséria, dos vícios, das doenças, da sub-nutrição, do não ter para onde ir. São as meninas que deveriam encontrar conforto no seio familiar mas, ao invés disso, são enviadas para as malhas da prostituição pela própria família para haver dinheiro em casa; são as relações laborais complicadas; é o álcool; são as estratégias de sobrevivência de quem pertence a uma classe baixa e tem de encontrar uma forma de sobreviver. Em suma, estão sempre em jogo estas dinâmicas de relação entre quem está numa posição social superior e o seu exercício de poder perante quem está numa posição social inferior. Esse poder é exercido quer pelo casamento, quer pelo acto sexual em si, pelo género, pelo emprego e habitação.
Raskólnikov tem nuances bastante peculiares e sui generis. As suas relações com a sociedade são praticamente inexistentes, não trabalha, não gosta de se cruzar com pessoas (em especial com a sua senhoria a quem deve mensalidades) e nutre escárnio pelo que vê socialmente. A sua própria relação com a sociedade é bastante caótica, revelando uma certa desorganização e luta interior. Isso vê-se na falta de vontade em ver pessoas mas, por outro lado, consegue ter reacções de inesperado altruísmo ou ajuda desinteressada por quem está em necessidade ou sofrimento como, por exemplo, deixar uma moedas das quais estava necessitado a uma família que precisa, mas sem se identificar.
Como podemos, então, entender Raskólnikov? Antes de mais, é uma mistura entre uma intelectualidade niilista e, ao mesmo tempo, rebelde da vida. Trata-se de um estudante intelectual divido entre a sua inércia mas, ao mesmo tempo, nem que seja através de um crime, ou de uma acção de bondade ou inesperada comoção, marca uma posição perante o que vê na sociedade. É aqui, neste preciso ponto, que entra o lado onírico. Entre os sonhos descritos no livro, o mais importante é o da égua que Raskólnikov, ainda criança, vê ser chicoteada e espancada até à morte pelo seu brutal e bêbado dono, encorajado por outras pessoas também já alcoolizadas, após terem saído de uma taberna. Raskólnikov, em pranto e assustado chora, tal como Nietzsche chorou perante o cavalo de Turim.
Há várias analogias que podem ser estabelecidas. A égua tanto pode ser a idosa assassinada por Raskólnikov; como a sua amada que foi lançada para a prostituição como forma de sustentar a família; como a própria madrasta da sua amada que se vê doente, tísica e exasperada porque vê os filhos pequenos subnutridos e é forçada a reparar na ineptidão do marido entregue à bebida e já sem esperança; ou a sua própria irmã, inicialmente empregada doméstica e mal-tratada pela família para a qual trabalha. Na verdade, aquela égua poderia representar qualquer personagem porque, de uma forma ou de outra, todos se vêem presos ou chicoteados pela sua posição, ou por um qualquer aspecto social. O choro de Raskólnikov perante o animal, tanto pode significar o seu arrependimento, a sua culpa e remorso por também ter sido, afinal, um carrasco — mesmo que a idosa tenha sido desprezível e tenha contribuído para a perpetuação da decandência social — como pode representar a sua comoção perante o fatalismo e amarras da vida, e a sua compreensão desse mesmo fatalismo.
Para a noção de catarse e redenção da personagem, Dostoiévski faz uma analogia com a história do renascimento de Lázaro como um novo homem. Assim será, também, Raskólnikov. Mas a culpa e o castigo nunca são postos em mãos divinas, em algo exterior. O crime, a culpa e o castigo somos nós, os humanos, que criamos. Nós somos o nosso inferno. Tal não quer dizer que a redenção também não viva em nós. Se for feita por e com amor, tanto melhor.