“Cuca Vida” é meramente amizade
Através de um jogo, durante cerca de dois meses e em isolamento social, todos os artistas da editora Cuca Monga gravaram o primeiro álbum do Conjunto Cuca Monga. Desta editora, fazem parte Bisp0, Capitão Fausto, El Salvador, Ganso, Luís Severo, Modernos, Rapaz Ego, Reis da República, Zarco e ainda Diogo Rodrigues, como produtor; sendo que várias destas bandas são compostas por “cromos repetidos”.
João Sala e Gonçalo Bicudo, dos Ganso, foram desafiados pela CCA a criar uma árvore genealógica da Cuca Monga, aquando de uma entrevista sobre o álbum “Não Tarda”.
No álbum “Cuca Vida” entram ainda, como colaboradores, Gonçalo Perestrelo, Isis Bernard, Joaquim Quadros e Constança Rosado. Feitas as apresentações, importa perceber como funcionou exatamente este tal jogo.
Como nos explica o baixista dos Capitão Fausto, Domingos Coimbra, apesar de ter sido ele a lançar o desafio inicial, depressa a ideia “começou a fazer parte de todos que aderiram em peso ao jogo.” O jogo funcionou num sistema de “passa a outro e não ao mesmo”. Cada elemento era livre para começar uma canção e gravar o que quisesse. Quando terminasse a sua parte, tinha de nomear outro colega, que tinha a mesma liberdade. O resultado final só era conhecido quando todos tivessem participado. O processo de passar o testemunho ocorria num grupo de Whatsapp, para que todos estivessem a par de quem ia continuar a música. Não era suposto haver batotas, isto é, “lobbies e mensagens privadas a puxar progresso, reformas e algumas mudanças”, mas Domingos admite que foram identificados os “saudáveis batoteiros e eram bem intencionados.”
Para começar uma canção o processo era o mesmo: qualquer um era livre de o fazer. Houve receio de alguma inatividade, mas Domingos diz que, durante um certo tempo, “estava toda a gente tão entusiasmada que estranho era ninguém começar qualquer coisa.” Deste jogo, surgiu então o álbum “Cuca Vida”, com dez músicas que não têm uma identidade musical única – mas é exatamente isso que torna o álbum tão diferente e rico. No total, foram criadas quase o dobro das músicas. As que ficaram no álbum foram eleitas por votação, sendo que as que restantes podem vir a ser “jorradas” cá para fora.
Um dos maiores desafios prendeu-se com a gravação e edição do som. “Naturalmente cedo vimos que o disco não seguiria a lógica mais embelezada de sons e capacidades técnicas”, admite Domingos. Muitos dos sons foram gravados com o telefone (e por vezes nota-se) e até utilizando instrumentos improvisados, mas é algo que não compromete, de todo, o objetivo do álbum. O mais importante, garante Domingos, era garantir que todos podiam participar, independentemente do facto de alguns terem mais recursos técnicos do que outros.
Para assegurar o melhor resultado possível, dentro do grupo foram nomeados “audio janitors” – no fundo, guardiões do áudio, que já estão mais habituados ao processo técnico de gravação. Este grupo era composto por Diogo Rodrigues, Manuel Palha, Tomás Wallenstein, Gonçalo Bicudo, Luís Montenegro e Diego Reis.
Assim que terminaram as gravações, chegou a parte de misturar, e também aqui o jogo seguiu pela mesma lógica. Como refere Domingos: “diferentes misturadores foram nomeados para diferentes músicas e tinham alguma liberdade criativa para produzir o resultado. Fosse a embelezar alguns instrumentos, regravar algumas coisas, ou até reestruturar algumas canções.” Ora, neste ponto surgiu um debate (saudável) entre o grupo, já que o processo de “embelezamento” poderia, de alguma forma, corromper o jogo. Domingos explica que existiram três correntes de pensamento, cada uma devidamente identificada com um nome em Latim, bem ao estilo daquilo que este bem humorado grupo de Alvalade nos habituou: a escola Puritas, a escola Consensus e a escola Progressum.
Os Puritas acreditavam que o ideal era não mexer em nada, numa abordagem mais pura; os Consensus defendiam a existência de algumas mudanças a nível técnico ou artístico, mas preservando a essência das canções e do jogo; os Progressum queriam levar as canções a “patamares maiores, alterando estruturas, repetindo refrões, adicionando letras e instrumentos”. No final, cada escola acabou por ter as suas vitórias e o disco apresenta cada uma destas abordagens. Apesar de tudo, o foco do disco “não é necessariamente o brio e a perfeição sónica, mas toda esta aventura, que julgo ser aparente”, reforça Domingos.
A tal aventura começa literalmente “Sem Razão”. Uma canção animada e descontraída que dá bem o mote para aquele que é o espírito deste álbum: a amizade. Já que “a vida é bela sem razão”, mais vale aproveitar um tempo de pandemia para trazer (Cuca) vida. Depressa se nota a existência de efeitos nas vozes dos intérpretes, algo comum ao longo do disco. Por um lado, não é usual em trabalhos de algumas das bandas da Cuca Monga; por outro, pode ter sido uma forma de explorar novas mecânicas e disfarçar eventuais falhas no momento da gravação (como explicado anteriormente). O que é certo é que mostra as vozes bastante características de uma forma totalmente diferente – e o resultado final é bastante convincente.
“Tou na Moda” é, sem dúvida, o hit do álbum. De acordo com Domingos, era, também, uma das favoritas do grupo. Os primeiros segundos fazem lembrar Unknown Mortal Orchestra e fica-se imediatamente agarrado quando a voz de João Sala surge. Entre várias intervenções, temos Tomás Wallenstein irreconhecível e Gastão Reis a dominar o refrão. É uma “excelência” de música digna de todos os swipe right que tiverem disponíveis. Foi o primeiro videoclipe a ser lançado, mas Domingos garante que “há mais vídeos para lançar”, como o de “Escudo”, que também já está cá fora.
“Travessia” é uma balada tão boa como aquelas a que alguns artistas da Cuca Monga já nos habituaram. Há direito a ouvir-se Tomás Wallenstein num registo mais próximo de Capitão Fausto; Madalena Tamen com a sua voz doce e calma; Luís Severo a citar Ágata e o cão Emílio (Emiliex), de Tomás Wallenstein, a ladrar no final desta canção, que (perdoem-me o cliché) só peca, de facto, por acabar.
Importa referir que a letra de cada canção seguia a mesma lógica do jogo. Como Domingos realça, “na maioria das vezes, o João Sala arriscava cantar primeiro. Quem seguia tentava ir atrás de uma qualquer ideia dele, e, nalguns casos, cada um seguia o seu caminho.” Por algumas vezes, quem era nomeado “respondia” a quem o nomeava na própria letra da canção – exemplo máximo disso é a faixa “Proporções Bíblicas (Absolutamente à porta)”. Conta com batida e letra goofy, cheia de interações, algumas apenas entendidas pelo grupo de amigos cucamongos. Esta faixa fez-me lembrar ligeiramente Conjunto Corona, com as devidas diferenças, é claro, mas serve para acentuar a diversidade de estilos presente neste álbum. Exmplo disso é também “Liberdade”, com vibes latinas que remetem para “Oye Como Va” de Santana.
O disco termina com “Amigos”, uma alegoria com animais que, apesar das diferenças, percebem “que a chave da amizade está na comunicação.” É exatamente isso que é “Cuca Vida”: um hino à amizade composto por sonoridades tão peculiares e dessemelhantes, que, apesar de não ser uma obra do outro mundo, nem super coesa, constrói-se muito bem pela celebração do companheirismo à distância. “Cuca Vida” é, por isso, meramente amizade – num bom sentido. Em alguns momentos, até nos faz querer ser amigos deste grupo. E, como mostra o exemplo da “disputa” entre as escolas Puritas, Consensus e Progressum, os versos finais deste disco – “[que] o amigo é sempre amigo, se concorda com o amigo, mas também se há discórdia sobreviver” – não são ditos apenas porque sim.
Um dos objetivos já expressos é apresentar “Cuca Vida” ao vivo. Estou meramente a aguardar por mais.