Entrevista. Vicente Wallenstein: “Encenar é resolver problemas atrás de problemas”

por Gustavo Carvalho,    2 Dezembro, 2022
Entrevista. Vicente Wallenstein: “Encenar é resolver problemas atrás de problemas”
Vicente Wallenstein / Fotografia de Filipe Ferreira
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Gaspar” é a terceira criação de “As Crianças Loucas”. É a estreia da companhia no teatro para a infância. Pelo ralo da banheira Gaspar chegar ao fundo do mar e depara-se com imensos sapatos. Tantos que decide meter as mãos na terra para resolver o problema. Com música dos Zarco; interpretação de Vicente Gil, Vasco Barroso e Catarina Rabaça; texto de João Cachola; encenação de Vicente Wallenstein; “Gaspar” é um musical que leva as crianças a sério. Quer guiá-las numa viagem pela desarrumação dos nossos quartos, da nossa vida na terra e no fundo do mar. Quer colocar questões sobre ecologia, deixando a cargo da imaginação das crianças a resposta. Está no Teatro Maria Matos, em Lisboa, aos sábados e domingos, até dia 18 de dezembro. Para pais e filhos conversarem no regresso a casa.

Conversámos com Vicente Wallenstein, em estreia como encenador, sobre as peculiaridades de fazer uma peça para crianças, da sua companhia e de como o teatro em Portugal só é feito por crianças loucas.

Em termos da comunicação, nas peças de teatro normalmente vem mencionado que é uma peça infantil. Mas no cartaz do “Gaspar” isso não é explícito. Achas que a abordagem que fizeram neste espectáculo não o torna uma peça de teatro infantil? Acaba por ser mais abrangente?

Nós, desde cedo, falámos sobre o que é fazer um espetáculo para a infância, que responsabilidade é essa de fazer um espetáculo de teatro para a infância? E de que forma é que nós devemos fazer as coisas de maneira diferente quando estamos a fazer um espetáculo para a infância e quando não estamos? Há uma tendência, às vezes, para conotar a palavra “infantil” como uma coisa que é infantilizada e que quer tornar a história que está a ser contada básica ou fácil. Nós, sem querer perder a perceção da história, também não quisemos simplificar demais e tornar a coisa infantil, no mau sentido da palavra. Portanto, não vir no cartaz [que é uma peça para a infância] é uma questão logística, de classificação etária. Mas também achámos que a estética da comunicação deixava claro que era para a infância. Mas foste tocar num assunto importante para nós, porque foi sempre uma coisa que eu fui falando à equipa: tentar não infantilizar as coisas. E quando digo isto, não foi só aos atores ou aos músicos, mas também a quem fazia os figurinos ou quem tomava decisões de criação em geral. Isto para que o espetáculo comunique com os miúdos, mas que não simplifique ou torne mais básico por ser para miúdos.

“A nossa imaginação, às vezes, mostra-nos soluções que nós não estamos a ver à partida. E que os adultos se calhar não vêem à partida. E os miúdos têm essa capacidade.”

Achas que é uma peça que leva as crianças a sério?

Sim, que fala frente a frente com as crianças. Fala de um e para um. Não fala de um adulto para para uma criança, fala sobre o que é que ser criança, o que é crescer, o que é imaginar, o que é criar histórias e entreter-nos com as nossas próprias histórias. Que é uma capacidade que perdemos à medida que envelhecemos. E portanto, sim, é levar a sério os miúdos nesse sentido de conversar com eles, de tentar falar com eles na mesma moeda, sem nos colocarmos num lugar de adulto para miúdo. 

Falaste com a equipa sobre não infantilizar a peça…muito especificamente sobre a linguagem: falando de questões ambientais, que às vezes têm termos específicos que podem ser mais difíceis de entender, como é que se gere esse aspecto de “temos de falar de uma forma que eles entendam, mas às vezes também temos que usar um certo tipo de linguagem para que possam chegar a casa e questionar. Como é que se constrói uma peça tendo isso em conta?

Isso é uma coisa que começou logo quando o texto estava a ser escrito pelo João Cachola. Ele, na minha opinião, já tem [no texto] alguns piscares de olhos a essa questão: de coisas que podem ser ditas que os miúdos vão para casa perguntar o que é que são. A dada altura, há uma das personagens que chama ao Gaspar “seu intelectual”, quase em modo de insulto. 

Os adultos riram-se disso. 

Pois, é um piscar de olhos para os adultos, como é óbvio, porque sabemos que a reação natural é perguntar «Ó pai, o que é um intelectual?» ou uma criança chegar à escola e dizer «És um intelectual!». Era um bocadinho essa reação que queríamos provocar.

Vicente Wallenstein / Fotografia de Filipe Ferreira

E em relação à linguagem…

Em relação à linguagem, nós também não quisemos ir por uma vertente científica sobre as questões ambientais. Quisemos falar sobre o tema, mas incorporado numa história imaginada por um miúdo. Nunca quisemos termos científicos, complexos, porque era a perspetiva dele. Tudo é uma grande imaginação da personagem principal, que é um miúdo. Portanto, quisemos que se mantivesse num campo e no universo dos miúdos. Mas ao mesmo tempo, não quisemos que a linguagem complicasse demasiado nem tornasse demasiado difícil de perceber a história e de perceber os ambientes que queremos criar. Ainda falando da linguagem, também vou à questão da conjugação da música com o texto, que faz parte da linguagem do espetáculo. E essa parte é capaz de ter sido a mais difícil de encontrar, porque é muita informação. Nós quisemos criar um espetáculo com música ao vivo, com projeção de vídeo, muito elementos cênicos a entrar…e a conjugação de como esses vários elementos comunicam com o espectador é que foi mais difícil de perceber: “Bem, quando é que faz sentido isto acontecer?”; “Se calhar é importante que aqui a música baixe, para que esta frase tenha mais importância.” Encontrar estas dinâmicas na comunicação do espetáculo é que foi, talvez, o maior desafio. A parte da linguagem em si, daquilo que é dito e de ser mais complicado, achamos interessante criar esses obstáculos, desafios, palavras que não são óbvias para os miúdos e que os ponha a pensar sobre o que significa aquela palavra.

Quando era miúdo, ia ver muito teatro que não era para miúdos. E as questões que eu levava sempre para casa eram as que eu não tinha percebido. Eu gostava era das coisas que não tinha percebido e eram sobre essas de que eu falava com a minha mãe. Tentámos encontrar esse equilíbrio.

O que é que vias nessa altura, que não era necessariamente para a tua idade?

Vi muita coisa. Muito por influência da minha família, que me levava muito ao teatro e também a espetáculos de dança. Não te consigo dizer um espetáculo específico, mas eram sempre coisas para adultos. Não necessariamente porque eram para maiores de 18 anos, mas porque não eram indicados para a infância. E muitas vezes os miúdos têm capacidade de ver um espetáculo que não é para infância. Muitos colegas nossos, que já são pais, levam os miúdos para os ensaios ou levam-nos a ver espetáculos que eles estão a fazer e que não são para a infância. E é muito giro ver a leitura que eles fazem das coisas. Claro que há espetáculos que não são adequados, mas quando não é esse o caso, os miúdos percebem muito mais do que, às vezes, nós pensamos. Têm muito mais capacidade de leitura do que aquilo de que estamos à espera.

Vicente Wallenstein / Fotografia de Filipe Ferreira

Sobre as dinâmicas de que falavas, de conjugar a música com o que está a ser dito, em termos da posição dos elementos da banda que estavam em palco. Elas ocorrem depois de a história já estar escrita ou ao longo do processo de escrever a história?

Na verdade, há processos em que o texto é escrito durante o processo de ensaios. Neste caso, o texto foi todo escrito antes. Portanto, quando iniciámos o processo de criação, começou por ser escrito o texto. Depois, em cima do texto, começámos a compor as músicas. E depois a ensaiar com o elenco. A partir desse momento, há coisas que se alteram; há correções que se fazem; há frases que mudam de sítio; há frases que se alteram porque achamos que, em determinado sítio, faz mais sentido o Gaspar dizer isto em vez de dizer aquilo. São coisas que fazem parte do processo criativo. E é ótimo teres a pessoa que escreve por perto que, sendo o autor o João Cachola, é uma pessoa que está presente, porque é membro da companhia. Portanto, temos a possibilidade de dizer: «João, acho que aqui, pela forma como estamos a construir as coisas, se calhar fazia sentido acrescentar isto» ou «Se calhar, fazia sentido retirar esta frase». Portanto, neste caso, foram feitas pequenas alterações, mas a estrutura em si já estava lá. Depois, claro, tens de adaptar a encenação ao texto. Há coisas que podes alterar e há coisas que são o texto. E às vezes discutimos opções. Posso dizer «Olha, acho que aqui devia ser tal». E o autor dizer: «Por acaso, eu acho que aqui não. É interessante como lá está». Então, acontece eu voltar atrás e dizer: «Então, estivemos a pensar melhor e, se calhar, mantemos isto como estava». É um jogo de compromisso entre aquilo que são as ideias do autor, as ideias do encenador, a forma como o elenco recebe as propostas do encenador e desenvolve essas ideias. Tens de estar constantemente a adaptar-te. Na verdade, eu acho que encenar é resolver problemas atrás de problemas. Mais do que outra coisa qualquer.

E esse processo levou quanto tempo?

Os ensaios foram dois meses. Mais ou menos oito semanas. Antes, tivemos duas semanas de composição. Na verdade, já existia uma base, mas o processo puro e duro, de reta final, foi de dois meses e meio. Isto a contar com composição e encenação. Tudo começou há uns dois anos, na realidade, quando escrevemos o texto e começámos a propor a alguns teatros. Com a Covid-19 tivemos de adiar várias vezes a apresentação e a estreia do espetáculo. Mas o projeto já tem quase três anos.

“Gaspar” / Fotografia de Ana Paganini

Nos restantes projetos que vocês já tinham feito n’As crianças loucas, o público-alvo era sempre mais ou menos este?

Até agora, nunca tínhamos feito espetáculos dedicados à infância.

Foi mesmo o primeiro?

Foi o primeiro espetáculo para a infância que fizemos. O “Lisboawood” também apontava para um público jovem, de adolescentes e adultos, mas este foi o primeiro espetáculo para a infância.

E porquê?

Foi uma vontade minha, na verdade. Sempre tive muita ligação com a programação de serviços educativos no teatro, portanto, programação para infância. E tive sempre muita vontade de desenvolver uma criação para a infância. E, na verdade, dentro da companhia, acho que sou a pessoa que tem mais esse ímpeto. E nós não decidimos fazer espetáculos só para adultos ou só para a infância. Até agora, foram sempre para o público em geral. E eu propus avançar com um espetáculo para a infância — e assim foi.

Tendo em conta esse processo de evolução, porque já tinham feito duas peças. “Gaspar” é a primeira para crianças… É mais difícil fazer uma peça como esta?

Não consigo dizer que uma seja mais difícil do que a outra. Têm desafios diferentes. E já falámos sobre eles. Tem que ver com a maneira como comunicas para um público mais jovem…

“Por vezes existe um conformismo em levar os miúdos dos anos seguintes às mesmas peças que já viram no ano passado. E às vezes se calhar pode ser mais interessante assistir a uma coisa que é original, que não faz parte do Plano Nacional de Leitura.”

Mas tens de ter mais atenção ao detalhe quando estás a comunicar com crianças?

Depende do objetivo do espetáculo. Eu acho que o detalhe é sempre importante num espetáculo de teatro. Estás a jogar com o foco e com a atenção espectador. E, portanto, encenar é ajudá-los com essa atenção, com para onde é que as pessoas estão a olhar e como é que consegues fazer com que as pessoas olhem para onde tu queres. Se calhar, tens de mudar a luz para que aquilo tenha mais importância. Eu acho que os detalhes são igualmente importantes. Acho que, depois, tens de adaptar para aquilo que tu queres construir com o espetáculo em si. Em termos de desafios diferentes, acho que é perceber como é que, na nossa estética e opinião, sem — lá está — infantilizar muito o discurso, como é que o adequas para que não seja demasiado complexo ou demasiado rebuscado para para os miúdos. Mas não consigo dizer que um seja mais difícil do que o outro. Aqui temos vários desafios. Além destes de que já falamos, temos o facto de [o Teatro Maria Matos] ser um palco muito grande, de estarmos a jogar com questões técnicas muito complicadas, por termos uma banda a tocar ao vivo e ao mesmo tempo atores que estão amplificados [a usar microfones]. Portanto, grande parte deste desafio também foi a questão técnica do som, da luz e da conjugação destes fatores do projeto. Acho que não consigo diferenciar o que é que é mais difícil entre espetáculos para a infância e para adultos.

Mas o que dirias que é mais desafiante quando estás a fazer um espetáculo para crianças?

É esta condução do foco deles, é tornar a narrativa o mais clara possível porque, se calhar, para os espetadores adultos até podes deixar mais em aberto esta questão de para onde é que queres que olhem. Porque deixas as pessoas selecionarem um bocadinho essa atenção. Aqui [num espetáculo para a infância] tens de conduzir ainda mais o foco porque, ainda para mais, nas gerações de hoje em dia — e nem é preciso falar do miúdos mais pequeninos, basta falar das pessoas mais velhas — temos cada vez mais dificuldades em concentrarmo-nos, em mantermos o foco. Então tens mesmo de conseguir conduzir a cabeça das pessoas ao longo da narrativa, para que não se cansem ou não se distraiam. Porque, quando tens muita informação em palco, e neste caso tens música, tens texto, tens vídeo, tens som amplificado…tens de conseguir conduzir estas coisas todas para que não se torne demasiado caótico, demasiada informação para ser processada. Os miúdos precisam ainda mais dessa condução. Acho que esse foi o maior desafio.

“Gaspar” / Fotografia de Ana Paganini

Achas que é um público mais exigente?

[Sem hesitar] Sim.

Porquê?

É mais honesto. As crianças não têm filtros. Se não gostam, não gostam. E manifestam-se. Se gostam, entusiasmam-se. Às vezes, os autores estão habituados a fazer espetáculos para o público em geral, em que o público não reage. Faças um belo espetáculo ou um de que as pessoas não gostam, o público é muito educado e mantém-se calado até ao fim. Na pior das hipóteses, bate poucas palmas no final. Quando estás com os miúdos, começas a senti-los mais irrequietos. Às vezes, as coisas não estão tão afinadinhas, tão perfeitas, começas a sentir uma certa inquietude na sala. Portanto, as crianças são mais honestas e sem filtros. E não fazem isso por mal. Estão a ser honestos. Isso é muito giro de se assistir.

E porque é que fazia sentido abordar este tema das alterações climáticas?

Acho que estamos num momento em que é inevitável falar sobre estas questões. E estas gerações são mais implicadas do que a nossa ou a dos nossos pais. Acho que a situação é evidentemente mais grave. Também nos interessou o facto de haver uma comunidade mais jovem cada vez mais interessada e mais participativa nestas questões.

E quando decidiste fazer o espetáculo para esse público, pensaste logo neste tema?

Foi uma coisa conjunta. O projeto nasceu ainda fora do contexto desta companhia. Era para outro contexto que acabou por não acontecer e aproveitámos para trazê-lo para a companhia e transformá-lo completamente. Mas, à partida, a proposta que lançaram foi fazer uma coisa para a infância, que é algo que eu já queria fazer. E a primeira temática em que pensámos foi a das questões ambientais. Também percebemos logo que não queríamos ir para algo mais cientificamente apoiado, mas sim para uma coisa mais fantástica. As nossas referências foram sempre mais a “Alice no País das Maravilhas”… o cair pelo ralo da banheira, o “outro lado do espelho”, a ostra… há aqui essas questões e uma data de personagens que aparecem, a forma como são enigmáticas na forma como dizem as coisas, em que a “Alice no País das Maravilhas” nos inspirou bastante. Mas não só: alguns filmes da Disney, também.

Pois, porque a Disney consegue comunicar para os dois lados: com as crianças e adultos.

Sim, consegue jogar para os dois lados. Piscar o olho aos adultos, porque sabem que estão a ver com os miúdos. Conquistam um público ainda mais abrangente. Nós tentámos sempre ter esse lado.

Mas para responder à tua pergunta, com certeza havia jovens implicados nestas discussões antes. Mas a Greta Thunberg veio aqui puxar um bocadinho mais pelos jovens para participarem nestas questões. E mesmo nas escolas vês que é um tema muito estudado e que os professores o trazem cada vez mais para a sala de aula. Portanto, não só sabemos que é um tema que está nas vidas dos miúdos como quisemos incitar que eles questiosassem cada vez mais. E o espetáculo propõe uma solução para um problema ambiental. O problema ambiental é: há sapatos no fundo do mar. A personagem pergunta porque é que há sapatos no fundo do mar. Não é suposto aquele objeto estar ali. E todo o espetáculo vai tentando resolver aquela questão dos sapatos. E no fundo o que nós mostramos é: a nossa imaginação, às vezes, mostra-nos soluções que nós não estamos a ver à partida. E que os adultos se calhar não vêem à partida. E os miúdos têm essa capacidade. Quando lhes fazes perguntas sobre estes problemas eles têm imensas ideias. Algumas delas podem ser estapafúrdias, outras não são assim tão estapafúrdias. Porque eles já estão informados, ou porque têm ideias muito interessantes de coisas que podem ser desenvolvidas e que só não são porque são muito caras ou porque os adultos nunca pensaram nelas. O que quisemos aqui era lançar um problema e que eles pensassem connosco que soluções é que podem existir. E dentro do campo do fantástico e do imaginário, a personagem propor colocar terra e sementes dentro dos sapatos e espalhar pela cidade e reflorestar no fundo a cidade.

“Gaspar” / Fotografia de Ana Paganini

Gostavas de daqui a uns tempos saber que houve crianças que foram fazer isso? Meter terra dentro dos sapatos dos pais.

Claro que sim, adorava. E acho que seria um ótimo sinal levarem para casa estas questões. Para a escola também. Sei que vêm escolas assistir e uma das coisas que também queremos é incitar os professores a debater um pouco o espetáculo com os miúdos. E este podia ser quase um protótipo que podiam pôr em prática. Era uma coisa que nós em miúdos também já fazíamos, plantar sementes dento de caixas de ovos. Aqui é a mesma coisa, mas em sapatos. Eu também dou aulas de teatro em escolas e acabei por levar também os temas do espetáculo para lá.

“É preciso ser completamente louco para fazer teatro em Portugal, porque o sistema está feito para que muito pouca gente possa fazer teatro com condições.”

A miúdos desta idade?

Dos três aos sete. E comecei a desenvolver esta atividade de agricultura quase. Levámos vasos, terra, eles escolheram as sementes que queriam plantar. Tivemos a estudar quais são os processos de plantação de cada uma das sementes que têm tempos diferentes. Porque apesar de tudo estamos em Lisboa. Muitos destes miúdos não põe as mãos na terra, não fazem ideia de onde é que vem uma batata. A verdade é esta. Se calhar se lhe perguntares como é que nascem as batatas alguns deles não sabem responder. Portanto era também um bocadinho retomar este contacto com a natureza, e incitá-los a interessarem-se mais pela origem das coisas e por procurarem soluções para os problemas. Porque eles vão enfrentar ainda mais do que nós estas questões. Estão a nascer no século XXI e vão atravessá-lo do princípio ao fim. Vão sofrer mais do que ninguém as consequências das questões ambientais.

Disseste que quando eras jovem ias ver peças que se calhar eram consideradas mais para adultos. Achas que devíamos rever as peças de teatro que os alunos vão ver?

Eu acho que existe alguma oferta, mas existe principalmente oferta de espetáculos a partir de textos que fazem parte do Plano Nacional de Leitura. Que é importante, porque dá uma materialização às obras que são estudadas na escola. Mas acho que também faltam criações originais para a infância, que é o caso. Estamos aqui a fazer um espectáculo com texto original, música original, vídeo e animação de criação original. Existem alguns centros de arte onde isso acontece cada vez mais, mas existe pouca oferta. Mas também não vou pôr só as culpas na oferta. Também às vezes há pouca procura por coisas novas. Por vezes existe um conformismo em levar os miúdos dos anos seguintes às mesmas peças que já viram no ano passado. E às vezes se calhar pode ser mais interessante assistir a uma coisa que é original, que não faz parte do Plano Nacional de Leitura, mas que vai trazer outras ideias, outros estilo, outras referências, outros textos. Acho que há falta de procura também em levar os miúdos a ver coisas novas, mas também na oferta. Já existem algumas programações para a infância, mas muitos teatros ainda só têm programação para adultos, e acho que há um buraco de programação nesse sentido.

E na perspetiva de fazer teatro para todos os públicos, pegando aqui no nome da companhia, é preciso ser ainda uma criança louca para fazer teatro em Portugal?

Sem dúvida.

E é também por isso que escolheram este nome?

Não foi por isso, mas encaixa-se muito bem. Vou passar a dizer que é pelas dificuldades em fazer teatro em Portugal. Nós quando fizemos o nosso primeiro espetáculo vínhamos da escola e foi um grupo de miúdos que se juntou para fazer um espetáculo, sem condições nenhumas. E na altura fomos dar de caras com o”Apocalypse Now”, do [Francis Ford] Coppola. Que é realizado a partir do “Coração das Trevas”, do [Joseph Conrad]. E interessámo-nos muito pela obra e desenvolvemos o espetáculo a partir destas duas obras. E uma das músicas principais do filme é dos “The Doors”, em que é cantada “and all the children are insane”. Que é uma das frases repetidas no filme. E que para nós foi uma frase que nos ficou muito na cabeça quando estávamos a criar aquele espetáculo e que fazia muito sentido naquilo que estávamos a escrever. E na altura o espetáculo chamou-se: “E todas as crianças são loucas.” Depois em conversa, em brainstorming, que é assim muitas vezes que os nomes surgem, ideias, ideias, ideias e alguém disse: “E se fossemos só ‘As Crianças Loucas'” E ficou, e foi a partir da música que escolhemos o nome. Mas respondendo à tua pergunta, acho que sim. Acho que é preciso ser completamente louco para fazer teatro em Portugal, porque o sistema está feito para que muito pouca gente possa fazer teatro com condições. Mesmo aqui nós estamos a fazer muito por vontade própria. Com os nossos próprios meios e a jogar no risco, na verdade, e a acreditar que o espetáculo vai correr bem, que vamos conseguir ter mais reposições e que a bilheteira também vai trazer financiamento, porque hoje em dia ou tu tens financiamento público, através da Direção-Geral das Artes, ou de alguns apoios que existem. No nosso caso tivemos um apoio que foi muito importante, que foi da Fundação GDA, que faz um trabalho muito importante nas artes. Mas é pouco, há pouco e também há muito aquela questão de “Teatro e Artes Performativas são todas subsídio-dependentes.” Eu por um lado percebo a questão e se calhar as artes deviam ser mais autónomas financeiramente, mas a verdade é que depois o mercado não está feito para que possas viver sem financiamento público-privado. E mesmo privado é um campo a que é muito difícil chegar. Se calhar, se fores olhar lá para fora, os mercados internacionais têm uma lei de mecenato muito forte e defendida para que as empresas tenham interesse em apoiar os projetos. Aqui é muito difícil conseguir chegar às empresas, que pode ser sempre uma fonte de financiamento importante para que os espetáculos tenham vida, porque eles não têm grandes benefícios. Então estamos sempre nesta luta dos apoios e só quem tem os apoios mais altos é que consegue ter condições para fazer um espetáculo como aquele que nós estamos a fazer. É um espetáculo que nem tem assim tanta gente em palco. São sete pessoas em palco, mas é preciso muito dinheiro para fazer teatro e existem poucos apoios e mesmo os que existem são para pouca gente. É curto o orçamento. E portanto eu acho que há que pensar muito sobre as questões de financiamento do teatro em Portugal. Nós aqui tentámos também ir um pouco às empresas privadas, às marcas, perceber quem teria interesse. Houve coisas que se conseguiram, houve outras que não se conseguiram. Mas fica claramente a ideia de que é difícil fazer teatro em Portugal. É preciso querer muito, tens que fazer muito caminho até conseguir ter as condições ideais para que isso aconteça. E mesmo aqueles que estão cá há muito tempo queixam-se da mesma coisa.

“Gaspar” / Fotografia de Ana Paganini

Exato, já é uma discussão que vem de há muito tempo.

Vem desde sempre e vai continuar e não estar resolvida. E agora até temos a questão do estatuto que vem tentar ajudar os artistas, mas que depois na realidade carrega muito em cima das estruturas. Associações sem fins lucrativos como a nossa ainda se vêem mais à rasca para conseguirem corresponder à lei e às questões do estatuto. E, portanto, é preciso encontrar outras formas de financiamento, que eu acho que ainda tem que se batalhar muito. Tem que se falar mais, as estruturas têm que se falar mais, os artistas têm que falar mais entre si e falar mais com o Ministério da Cultura, porque não há condições para toda esta oferta. Há muita oferta e acho que faltam condições para que essa oferta exista, caso contrário, vai cada vez haver menos e acho que não é para aí que queremos caminhar.

Acaba por ser um meio que vive muito da individualização. Cada um por si a lutar para ser a oferta que consegue vingar.

E muitas vezes as opções são fazer espetáculos com poucas pessoas. Ter pouca gente em cena, ter pouco cenário.

Quando dizes poucas pessoas… em palco.

Em palco e mesmo a equipa que apoia. A equipa técnica e a equipa artística. Nós aqui somos sempre crianças loucas e queremos arriscar e queremos pôr o máximo em tudo, portanto, além das sete em palco, há mais doze pessoas que estão por trás. Mas a tendência vai ser sempre para reduzir as equipas, porque não há condições para sustentar esta gente toda. E é pena, porque acho que tem de haver espaço para tudo. Coisas para novos e grandes espetáculos de grandes salas, com grandes cenários, com grandes elencos, com grandes condições técnicas. E é preciso perceber como é que essas condições se conseguem.

E apesar disto tudo, já estão a pensar num sucessor?

Estamos já a pensar no próximo. Estamos a pensar numa continuação deste já.

“Gaspar” / Fotografia de Ana Paganini

Continuação?

Sim, este espetáculo vai estar em cena até ao dia 18 de dezembro. Mas queremos já tentar arranjar uma reposição e idealmente começar em Lisboa e depois perceber se existem interessados em levar o espetáculo para fora de Lisboa. Fazer uma digressão eventualmente, levar a outras cidades. E estamos também já a preparar o próximo espetáculo da companhia, que é encenado pelo João Cachola. Chama-se “O Olho”. É um espetáculo só com atrizes, mulheres. Ainda não tem data de estreia, mas irá estrear em 2023.

Qual é o teu papel nesse espetáculo?

Produtor aqui nós trocamos muito de papéis. O João encenou por exemplo o último espectáculo e escreveu. Este ele escreveu e eu enceno. Ele encena o próximo. E depois mesmo o resto da equipa vai fazendo produção, vai fazendo assistência de encenação. Às vezes são atores, outras vezes não são. Vamos trocando um bocado os papéis.

E esse espetáculo volta a apostar no público mais novo?

Este vai ser um espetáculo para público em geral. Depois em breve acho que vamos também começar a pensar o que é que poderá ser a próxima produção para a infância. Porque de repente foi a nossa primeira produção para a infância, percebemos que é um campo que nos apetece e interessa trabalhar. E portanto, para já, vamos apostar em tentar dar continuidade a este projeto, mas depois vamos começar a pensar em mais projetos para a infância.

Quão arrumado está o teu quarto?

Muito desarrumado. Aliás eu estou a mudar de casa, portanto não é só o quarto, é a casa toda. Mas é muita coisa. Foi a minha primeira encenação. E portanto foi perceber quais são os desafios de conseguires ligar todos os setores da equipa e fazer com que eles não só se cumpram a si mesmos, cumpram os seus próprios objetivos, mas que se adaptem também aos outros setores e que conjuguem as várias vertentes do espetáculo. E às vezes isso consome-nos muito. Os horários são muito alargados e quando se chega a casa é continuar a pensar quais são os problemas que é para resolver e quais são as ideias que surgiram de coisas para melhorar. Portanto quando arrumar aqui o espectáculo vou arrumar o quarto.

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