‘Culture II’, de Migos, e a síndrome da sequela
“Do it for the culture (culture)/They gon’ bite like vultures (vultures)”, é a máxima que se ouve em “T-Shirt”, um dos singles do segundo álbum de Migos, Culture, o seu primeiro grande estrondo na indústria musical. A ideia que pretendem passar é que tudo o que fazem é pela cultura popular – e especialmente pela cultura hip hop – é com esse objectivo em mente, expandir a cultura, enriquecê-la (e enriquecerem). E a verdade é que desde 2011 que Migos têm mostrado o seu papel influente no hip hop, mais especificamente na música trap. O trio oriundo da zona de Atlanta destaca-se pela química bem estruturada entre os três membros – Quavo, Offset e Takeoff – e um star power que transparece. Mas a sua fama estende-se para além da música. Foram catapultados para o estrelato mundial depois do seu single “Bad and Boujee” ter invadido muito mais do que o espaço sonoro ao dar origem a um meme, expondo o tema a uma audiência muito maior. Seguiu-se um shout-out de Donald Glover (a.k.a. Childish Gambino), que os apelidou de “Beatles da nossa geração”, e finalmente, graças a eles vemos incontáveis desportistas em pose triunfal, honrando o vulgarmente denominado Dab. Mas tal como no Dab, Migos não inventaram a música trap, são sim um dos grupos responsáveis pela crescente popularidade deste género musical.
E é graças à música trap que o hip hop atingiu o nível em que está. Nunca este género musical foi tão popular como é actualmente, e muito deve aos instrumentais digitais de sintetizadores acompanhados de pratos de bateria efervescentes que caracterizam a música trap, apesar de este estilo de hip hop não ser dado à profundidade e ao lado mais consciente de outros artistas deste mundo. Tendo isso em conta, Culture é um bom álbum de trap e tem alguns bangers decentes – “T-Shirt” com um flow popularizado por Migos, rimando em tripletos, “Slippery” ou “Get Right Witcha” – e uma criatividade no uso de ad libs, fomentando Migos como um dos grupos imperdíveis neste estilo musical. O álbum é compacto, directo, fluido entre as várias músicas, sem grande tempo a perder. Pelo contrário, a sua sequela Culture II é um álbum exacerbado, “inchado”, com demasiados temas e muito pouco foco. Ninguém pede profundidade a um estilo musical que raramente a demonstra, mas, se Migos apresentam uma exaustiva maratona de quase duas horas de material, é bom que seja minimamente significativo. (Spoiler: não é.)
O melhor aspecto deste álbum é – como em grande parte dos projectos de música trap – a parte instrumental. Nomes como Metro Boomin’ (um dos produtores mais in demand na música trap), DJ Durel, Murda Beats ou Zaytoven fazem parte da equipa de produção, e Quavo vai também mostrando os seus dotes. Apesar de ser sem dúvida o membro mais carismático e com mais estatuto do trio, é talvez o que menos qualidade demonstra nas rimas, e a transição para a mesa de produção mostra outras valências do artista. Mas no meio de tantos “veteranos” do trap, o herói das batidas é Pharrell Williams, através da excelentemente produzida “Stir Fry”, de batida absolutamente fenomenal e refrão infeccioso cantado por Quavo. Kanye West também demonstra os seus dons como um dos produtores na “tremida” “BBO (Bad Bitches Only)”, com uma melodia de teclas que lembra qualquer coisa oriental e uns sopros bem incluídos ao estilo do irreverente rapper de Chicago.
Existem três tipos de músicas em Culture II: boas adições à discografia de Migos – além das já referidas, a “sombria” “Notice Me”, com um refrão viciante de Post Malone, é agradável; “Narcos” é uma boa emulação do sentimento da música latina, apesar de, à semelhança de “Walk It Talk It”, ser reservada na sua execução – músicas paupérrimas, e músicas que são claras repetições de ideias do álbum anterior. Sobre a última categoria temos como exemplos “Too Much Jewelry” – que lembra “Big on Big” (ambas produzidas por Zaytoven) – ou “Open It Up” – que lembra “Deadz” (mais uma vez, ambas produzidas pelo mesmo artista, Cardo). Sobre os instrumentais que mais desapontam, temos uma mão cheia deles: “Flooded” é básica e repetitiva, “Beast” e “Supastars” idem, e “Work Hard” tem um refrão absolutamente intragável. O single “MotorSport” é absolutamente genérico, com barras satisfatórias da “novata” Cardi B (especialmente no final) e um verso pobre e rudimentar de Nicki Minaj. Com tantos gigantes do mundo do hip hop esperava-se mais. E esperava-se mais da vasta lista de músicas que compõe Culture II, mas em vez disso temos três ou quatro temáticas gerais a todas as músicas, repetindo-se constantemente, que apelam a um consumismo voraz e reservado a muitos poucos. Até existe uma música sobre joalharia em forma de emojis! Como se isso não bastasse, “Crown the Kings” vai buscar uma sample de “Get Up, Stand Up” de Bob Marley e refere que o trio devia ser coroado rei porque está no topo da sua actividade. Será que existe um uso mais distorcido para a mítica música do icónico artista de reggae?
É só no final que temos uma ideia do que este projecto poderia (e deveria) ser: uma reflexão do percurso que trouxe Migos até ao topo da cultura popular. “Made Men” e “Top Down on da NAWF” mostram um lado mais empático de Migos, sendo que a primeira desliza por uma batida a lembrar R&B dos anos 90 com a pujança trap actual, e discute a consagração dos objectivos do grupo, enquanto que a segunda é um bom refúgio de toda a abrasão que veio antes e uma reflexão empática bastante efectiva. Era a música perfeita para acabar o álbum, mas Migos não estavam satisfeitos: decidiram ainda acrescentar “Culture National Anthem (Outro)”, mais uma música desprovida de significado, concluindo o álbum com uma metáfora acidental: o conteúdo apelativo de Culture II é diluído no meio de faixas que pecam pela pouca versatilidade e patrocínios a marcas de alto gabarito. Músicas como “Gang Gang”, “Stir Fry” ou “Notice Me” são aquelas que deveriam definir Culture II; os temas que falam directa ou indirectamente sobre o novo estatuto cultural de um dos grupos mais proeminentes da história da música trap, que elevaram este género e consequentemente o hip hop a um novo patamar na cultura popular. Mas a cultura pela qual Migos dizem lutar ganhou muito pouco com este projeto, com muitas músicas que foram feitas em cinco minutos, sem atenção nenhuma, para maximizar os rendimentos do streaming e para engordar um álbum já por si anoréctico.