‘DAMN.’, o relato biográfico e sentido de um dos melhores rappers da história
Kendrick Lamar é um artista numa viagem de descoberta. A sua música espelha a curiosidade do ser humano em busca de respostas para as questões mais relevantes do seu viver. O rapper é claramente influenciado pelo mundo que o rodeia, inspirando-se nas pessoas que nele habitam e com quem convive para conjurar letras profundas, fazendo do hip-hop um veículo para uma mensagem necessária e cada vez mais importante. Faz música desafiante de um ponto de vista emocional, intelectual, lírico e musical, apresentado-se como um contador de histórias nato e um observador atento. Para além disso, e apesar da profundidade da sua música não ser estranha a este estilo musical, Kendrick tem elevado o rap consciente a novos patamares de qualidade e popularidade através da sua talentosa abordagem ao contexto social e político em que se insere.
A maneira como To Pimp a Butterfly, o terceiro álbum de Kendrick Lamar, enaltece a cultura e a comunidade negra e, ao mesmo tempo, reflecte sobre os problemas que a assolam, revela uma abordagem metódica e tremendamente atenta ao mundo circundante. A infusão de jazz, funk e soul com letras sinceras, rimas bem elaboradas, e um flow arrebatador que se adapta fielmente a cada um dos instrumentais resulta num álbum sério e inteligente, com muita música que seria de qualidade mesmo que se omitisse a excelente prestação de Kendrick. O álbum está repleto de mensagens subliminares, e outras mais directas em relação aos vários problemas dos Estados Unidos da América, com especial ênfase para a realidade testemunhada pelo americano. Mas, no seu novo projecto DAMN., o rapper aposta numa comunicação menos metafórica, denotando-se uma urgência inerente à transmissão de uma mensagem mais explícita. Na capa do álbum, vemos um artista derrotado, com as letras gigantes do título coloridas a vermelho a explicitarem o estado de espírito que a face de Kendrick transmite tão claramente.
A própria sonoridade deste novo álbum afasta-se do som do álbum anterior: os elementos de jazz e soul que caracterizavam To Pimp a Butterfly são praticamente inexistentes, optando antes por um som mais fiel ao hip-hop, e que remonta à sonoridade de good kid, m.A.A.d city, o segundo álbum do artista. Bangers como “DNA.”, “LOYALTY.”, ou o single “HUMBLE.” mostram uma sonoridade mais digital, com o hip-hop no centro da construção das batidas. Produtores como Sounwave, o baixista Thundercat e DJ Dahi estão de volta à mesa de produção e artistas como Mike WiLL Made-It, Bēkon ou BADBADNOTGOOD fazem a sua estreia ao colaborar pela primeira vez com Kendrick num dos seus álbuns.
Este novo álbum é um registo pessoal em que Kendrick explora as suas próprias lacunas e virtudes, fazendo um paralelismo com a sociedade que habita. Os nomes das músicas, curtos e objectivos, escritos em maiúsculas e com um ponto final, parecem espelhar uma mensagem determinada, definitiva, sem margem para dúvidas. O álbum vai alternando entre momentos mais esperançosos e outros mais tenebrosos, com elementos de músicas diferentes que se contrastam como duas faces da mesma moeda. “LUST.” com a sua batida sensual e cativante hipnotiza o ouvinte enquanto descreve uma rotina de entrega ao prazer e aos bens menores e a desilusão dele e dos seus pares aquando da eleição de Donald Trump. “LOVE.” por sua vez, é mais marcado e adornado por uma doce melodia de Zacari, em que ouvimos Kendrick dedicar o seu amor à mulher da sua vida, com uma voz emocionada e praticamente cantada. Em “PRIDE.”, O rapper discute orgulhosamente as suas virtudes e o seu estatuto como um dos melhores rappers da história do género (“I can’t fake humble just ‘cause your ass is insecure”), com um instrumental suavemente marcado, uma voz que vai soando distorcida, alterando o seu tom aleatoriamente, e um refrão cantado por Steve Lacy semelhante a lamúria, verdadeiramente cortante e tristemente sedutor. Este tema contrasta drasticamente “HUMBLE.”, robusto e agressivo, em que Kendrick de forma ameaçadora exige humildade, respeito e exige o reconhecimento da sua qualidade e o abandonar das falsidades (“I’m so fuckin’ sick and tired of the Photoshop/ (…) Show me somethin’ natural like ass with some stretch marks”).
De facto, os momentos mais brilhantes de DAMN. são os mais pessoais: em “FEEL.”, um dos temas mais íntimos de todo o projecto, é clara a frustração de Kendrick com o estrelato e com o estado do mundo, usando a anáfora como recurso numa música que fica progressivamente mais intensa e exacerbada. Mas o melhor momento é mesmo “FEAR.”. Na música mais longa do álbum, dotada de uma batida seca e atmosférica cortesia de The Alchemist, Kendrick prova mais uma vez ser um contador de histórias exímio, e leva-nos por uma viagem por três momentos da sua vida e os medos que o assolaram nessas etapas. No terceiro verso, e aos vinte e sete anos, o seu maior medo é o julgar da sociedade, a imagem que espelha da sua comunidade, de si mesmo, e da sua injusta aparência perante a opinião pública (reforçado por uma sample em “BLOOD.” do diálogo entre dois jornalistas do canal de notícias conservador Fox News, que criticam a letra de “Alright”, uma música de To Pimp a Butterfly que se tornou um hino universal de luta contra as adversidades). Mas, ainda assim, o artista não deixa que esse julgamento o deixe de empunhar com orgulho a sua origem e herança, comprovado pela possante e assertiva “DNA.”.
As palavras de Kendrick são o principal aspecto da música em DAMN., enquanto que, em To Pimp a Butterfly, as partes instrumentais tinham mais preponderância que neste novo projecto, eram tão importantes para a mensagem da música como as palavras que as enchiam. O fenomenal solo de teclas de Robert Glasper em “These Walls” ajuda à mensagem e dá força ao último verso revelador de Kendrick. O saxofone entusiasmante do prodígio Kamasi Washington em “u” complementa o seu estado de espírito na música, selvagem, raivoso e barulhento. E, finalmente, “For Free?” acompanha o flow espectacular com um instrumental vivo, pulsante, com um passear musical de contrabaixo cheio de destreza, e todo o encanto que o jazz transmite. Além disso, o poema que Kendrick Lamar profere no final da maioria das músicas, acrescentando versos a cada tema que revelam algo sobre a música que se sucede, ajuda a uma maior coesão neste projecto. To Pimp a Butterfly parece mais calculado, contido mas assertivo enquanto que DAMN. é propositadamente abrasivo, directo, menos cuidado.
Em DAMN., a mensagem que Kendrick quer passar está lá, na sua totalidade, mas a entrega e a transmissão não é tão articulada e inspirada como o rapper já nos habituou. Descreve um artista e o seu desabafo, apoiado por uma realidade que o valida e lhe dá sentido mas por vezes soa apressado, sem apresentar a clareza lírica de outros tempos, sem mostrar o discernimento acertado que o artista de Compton e “Mr. One through Five” (como se auto-intitula em “ELEMENT.”) possui. A boa produção aliada a um relato subjectivo, pessoal e sem nunca comprometer a sua arte resulta num bom álbum, conjugado por um homem diferente do que vimos em To Pimp a Butterfly, para tempos diferentes dos que se viveram aquando do lançamento desse álbum.
Músicas preferidas: “FEAR.”; “LUST.”; “PRIDE.”; “DUCKWORTH.”; “HUMBLE.” e “ELEMENT.”
Músicas menos apelativas: “LOYALTY.”; “YAH.” e “XXX.”