“Dark Crystal: Age of Resistance”: o renascimento do cinema de efeitos práticos
Desde o início dos tempos que, sempre que surge alguma inovação no cinema, esta costuma ser criticada ao máximo. Foi assim com o início do cinema “falado”, com o CGI (Computer-Generated Imagery, ou as imagens geradas por computador) e, mais recentemente, com o 3D (o mais recente, já que o 3D existe há várias décadas). As inovações técnicas são, maioritariamente, consideradas desnecessárias e apenas truques para se fazer mais dinheiro. Embora a utilização de cada uma das técnicas possa ser matéria de opinião e preferência, a sua função é bastante objectiva: acrescentar valor a cada filme. O problema tem sido a excessiva utilização de algumas destas técnicas em prol de outras soluções que até trariam mais qualidade, meramente por serem mais rápidas ou baratas.
Um dos exemplos mais claros que se alterou com esta evolução foi o cinema de animação. O que era outrora desenhado por vários artistas de forma manual é agora produzido de forma digital. De um ponto de vista artístico essa mudança continua a ser motivo de discussão. O que é “melhor” ou “pior” é meramente questão de opinião, mas uma coisa é certa: com a massificação das técnicas digitais no cinema de animação, muitos dos filmes perderam identidade visual. Embora alguns estúdios tentem manter a identidade analógica (como os estúdios Ghibli e outros de animação japonesa), a grande maioria dos estúdios seguiu pelo caminho maioritariamente digital, o que não é sinónimo nem de maior nem de menor qualidade.
Existe ainda outro segmento que sofreu ainda mais com esta evolução: o cinema de efeitos práticos, nomeadamente todos os filmes e estúdios que usavam fantoches e réplicas de monstros, humanos, animais, carros, etc. Se compararmos o primeiro “Jurassic Park” com o último, por exemplo, é óbvio que o de 1993 nos remete para um ambiente mais realista, em que o animal, de facto, “existe”, está em contacto físico com os personagens e partilha o mesmo espaço físico de todos eles. Em qualquer um dos “Jurassic Park” mais recentes, essa sensação de realidade perde-se com a utilização, excessiva ou não, de CGI, tornando esses mesmos animais menos presentes de forma física. A utilização de CGI nem sempre é negativa, é, sem dúvida, positiva em várias situações, mas este é um dos exemplos onde existem claras limitações na sua utilização.
Desta forma, mestres como Jim Henson, Jiří Trnka, entre outros, tiveram que reformular a sua estratégia, ou arriscar perderem os seus fãs graças à evolução digital. É neste contexto algo conturbado para o cinema de efeitos práticos que surge “Dark Crystal: Age of Resistance”.
Jim Henson não precisa de grandes introduções. O criador dos “Muppets”, “Labyrinth”, Sesame Street (não como criador, mas sim como artista), entre outros, deixou um legado que será, para sempre, imortal. Uma das suas criações menos conhecidas nos últimos anos chama-se “Dark Crystal”, um filme de animação, mais propriamente com recurso a efeitos práticos e bonecos. Este filme de 1982 não foi um enorme sucesso comercial, mas enraizou-se no cinema de culto, muito graças ao seu universo extremamente rico em detalhes, personagens, raças, etc, mas também ao lado bastante humano e social (do ponto de vista crítico) que Jim Henson conseguiu criar dentro deste universo de fantasia.
Após anos e anos de tentativas falhadas de uma possível sequela, eis que a produtora mais famosa do momento, Netflix, decidi ressuscitar este universo através de uma série de 10 episódios. “Dark Crystal: Age of Resistance” leva-nos vários anos antes da narrativa principal do filme de 1982. Nesta série, seguimos diferentes protagonistas de diversos clãs Gelfling, descobrimos como os Skeksis ganharam o seu poder e ficamos a saber um pouco mais sobre todo o universo em redor, assim como outros personagens que já apareciam no filme original.
Do ponto de vista técnico, a série brilha no seu esplendor. A utilização de CGI é inteligente e necessária, sendo feita apenas em momentos fulcrais, onde seria, realmente, complicado usar efeitos práticos. Os fantoches ou bonecos são o coração do filme e o seu cuidado a nível de guarda roupa, faces, movimentos, etc, é incrivelmente detalhado. Estamos perante aquela que é provavelmente a melhor adaptação deste tipo de animação em série. Cada personagem tem detalhes únicos e movimenta-se de forma própria, criando uma noção de realismo quase assustadora. A história expande bastante o universo já anteriormente criado e faz todo o sentido, tendo em conta os anos que antecedem a história principal. É fantástico regressar a este universo que se julgava perdido no tempo, mas é ainda mais incrível vê-lo expandir-se com tamanha qualidade.
“Dark Crystal: Age of Resistance” não é uma série para todos. Há, primeiro, que ultrapassar alguns preconceitos em relação à animação mais tradicional, e depois é também necessário ter-se um grande espírito de fantasia, dado que há muito pouco de real (do nosso universo) neste mundo. Ao contrário de outras sagas, como “Lord of The Rings”, “Harry Potter” ou “Game of Thrones”, Dark Crystal vive num universo visual de fantasia exclusivamente seu, e esse poderá ser um desafio para o público que desconheça este universo.
Contudo, quem se deixar encantar por este universo vai ter aqui uma grande recompensa, pois a história de Rian, Brea, Deet, Hup e dos maléficos Skeksis, é uma das mais brilhantes dos últimos anos e por debaixo da sua metáfora, uma história assustadoramente real.